As bruxas andinas de Mónica Ojeda e as raposas de José María Arguedas
o mistério é uma prece que se impõe
Sim, nesta edição vou falar de literatura latino-americana! Este mês fui tomada pelos contos de Voladoras, da equatoriana Mónica Ojeda, convidada da FLIP deste ano, e exímia tradução de Silvia Massimini Felix. É daquelas histórias de horror cotidianos com pitadas sobrenaturais, porque a realidade é muito estranha. São narrativas úmidas, cheias de fluidos, perturbadas e perturbadoras.
A escritora equatoriana Mónica Ojeda
Nesses contos, Ojeda faz releituras de mitos andinos e do leste europeu trazendo temas como incesto, feminicídio, abuso e violência. “As voladoras”, o conto que abre o livro homônimo e um dos meus preferidos, traz este ser que saiu de uma lenda da região de Mira, no Equador. As voladoras são uma espécie de bruxa que voam não andando em vassouras, mas passando um unguento de mel nas axilas —- algo que a protagonista faz.
“‘Se algo tão grande como Deus abre os olhos por detrás dos seus ossos, você se dissolve como poeira na água e deixa de existir’, ele me disse. […] O mistério é uma prece que se impõe.”
As voladoras, conto de Mónica Ojeda
Segundo a tradição oral, são mulheres que levam e trazem notícias de qualquer lugar do mundo, de modo imediato, e valem-se de feitiços para ocultar casos amoroso de homens casados. Na versão de Ojeda, esse ser se parece com as Greias (são cegas, só tendo um olho, como as voladoras do conto) e as Harpias da mitologia grega, meio-mulheres, meio-pássaros. Tudo isso misturado a uma história em torno do abuso de um pai com sua filha.
Gosto tanto dessa capa!
A imagem da bruxa surge nas duas outras histórias seguintes: “Sangue coagulado” e “Cabeça voadora” (a trinca que já torna esse livro excepcional, junto com “Voladoras”). No primeiro, uma garota jovem, considerada não muito brilhante, passa a aprender o ofício da avó, considera a bruxa do vilarejo: ajudar mulheres a abortar. O sangue jorra das páginas, grudas nas mãos e torna suja e elevada o ofício da da aprendiz de feiticeira. Há também aqui estupro e relação abusiva entre a protagonista menor de idade e o ajudante mais velho do terreno. E, claro, gravidezes indesejadas. Tanto a protagonista desse conto quanto a de “As voladoras” não têm vergonha do tamanho dos seus quadris.
Em “Cabeça voadora”, que conta a história de uma mulher que encontra a cabeça da adolescente que era sua vizinha e foi morta pelo pai, as bruxas aparecem na forma das Umas. Saídas dos mitos peruanos, são cabeças, em geral, de mulheres, capazes de se separar do seu corpo para atormentar viajantes, em especial homens jovens. A protagonista do conto acaba participando de um ritual com esses seres na casa da garota morta.
“Caninos” faz uma releitura BDSM da licantropia, em que a Filha passa a ter como companhia a dentadura do pai alcoólatra, que sentia prazer em fazer o papel de cachorro. “Slasher” ressignifica o estranhamento do duplo com as gêmeas Bárbara e Paula (que tem deficiência auditiva) e são parte de um duo gótico de música experimental. “Terremoto” segue a relação entre duas mulheres em meio a um terremoto.
Já “Soroche” traz um estilo mais irônico e de vários pontos de vista. São quatro amigas que sobem uma montanha alta dos Andes e relatam o que aconteceu a caminho do topo. “Soroche” é o nome do “mal de altura” que pode acometer algumas pessoas diante da redução de oxigênio em alturas elevadas. Pode causar alucinações e dores de cabeça e enjoos. O elemento mágico aqui aparece na forma de um indígena que pode ou não ter se transformado em um condor.
Na Bolívia, no Peru e no Equador, ele figura em várias lendas. Em Cotopaxi, Equador, há uma lenda que diz que o condor foi enviado por uma divinidade para resgatar uma jovem pastora de ovelhas e era maltratada pela família. Ao sobrevoar a lagoa de Quilotoa e chegar ao ponto mais alto do páramo, a jovem se transformou na mulher condor e deu à luz aos mensageiros do universo.
Em Imbabura, norte equatoriano, o condor é o “senhor Apu Kuntor”, escolhido como mensageiro pelo grande deus Inti, atravessando o arco-íris e levando debaixo de suas asas aqueles que a contaminam para purificar a Pachamama (mãe terra).
Um dos mais complexos é “O mundo de cima e o mundo de baixo”, que une o xamanismo à ressureição dos mortos: um pai que perdeu a filha tenta fazê-la retornar à vida no corpo da mulher morta. O protagonista-narrador (provavelmente branco) se vê como um xamã.
“‘Deus é grande e entende a nossa fome.’
É por isso que um xamã desossa as palavras adormecidas á sombra das montanhas. Ele conhece a musculatura do verbo, a descrição do universo como uma selva interior emaranhada. Ele é pai e fala com a natureza. Pronuncia o idioma dos animais. Ele poupa suas vidas e as tira com igual respeito.
Um xamã não é Deus, mas se assemelha a Ele.”
“O mundo de cima e o mundo de baixo”, de Mónica Ojeda
Por causa desse título, não tive como não lembrar de, claro, Stranger Things (só vi a primeira temporada, sorry, leitores), mas também de El zorro de arriba y el zorro de abajo, sexta e última obra do peruano José María Arguedas (1911-1969). Foi publicada postumamente em 1971. É um livro de gênero híbrido, pois os diários de Arguedas são entremeados pelos capítulos do romance que estava compondo. A princípio, é considerada uma obra incompleta, pois o autor nunca a terminou definitivamente, uma vez que se suicidou antes de finalizá-la. No entanto, a incompletude do romance faz parte da natureza da obra, da mesma forma que os diários, juntamente com os capítulos fazem parte dela.
José María Arguedas
O leitor possui referências claras do que é um romance e do que é um diário; essa obra desafia, portanto os limites desses gêneros literários, se situando – tomando emprestado um termo usado por Silviano Santiago – em um “entre-lugar”, nem cá, nem lá, nem acima, nem abaixo. Essa faceta do livro fica clara após a leitura do Epílogo, um conjunto de cartas de Arguedas enviadas ao editor Gonzalo Losada, em Buenos Aires. Ali, Arguedas explica como a obra deve ser publicada, de forma incompleta, fragmentada e entremeada pelos diários.
O romance procura mostrar as transformações pelas quais a cidade portuária de Chimbote, no Peru, passou ao longo do processo de modernização, causado pelo aumento da atividade pesqueira. Com isso, muitos imigrantes dos Andes chegaram à cidade, atraídos pela oportunidade de ascensão econômica e social e a sua entrada para a “modernidade”. Na visão do autor, esse contato traz consequências desastrosas para os imigrantes andinos, de origem indígena, uma vez que sucumbem à degeneração moral diante dos vícios da cidade, com seus bares e bordéis. É uma visão de que a “civilização” corromperia o homem andino que, em nas áreas montanhosas, ainda manteria um estado “natural” de não degeneração ao entrar em contato com a “modernidade”.
Lembrou-me muito das ideias das teorias científicas degeneracionistas do século XIX, que viam que o contato com a “civilização”, a “urbanização” e a “modernidade” levariam à degeneração moral e racial de populações autóctones no que se consideravam ser estágios distintos de evolução. Ao mesmo tempo, é um retrato de uma modernização que parece concorrer em uma relação assimétrica de poder dentro do campo das identidades culturais, uma em que o homem andino tem poucas vantagens diante do acelerado e implacável processo modernizador capitalista. Essa visão pode ter se originado a partir do ofício de antropólogo e etnógrafo ministrado por Arguedas, que era um estudioso da cultura indígena do Peru.
Arguedas iniciou o projeto desse romance em princípios de 1966, tendo a ideia de escrever sobre os pescadores de anchova e a revolução produzida pela indústria da farinha de pescado na costa peruana. Arguedas visitou várias vezes Chimbote para registrar entrevistas com os pescadores e moradores locais e, mesmo assim, achava que não conhecia bem a cidade. Foi em meados de 1968 que ele pensou em intercalar os capítulos de ficção do romance com alguns dos seus diários pessoais.
O período em que escreveu o livro foi muito difícil para Arguedas, uma vez que passava por uma grave crise de depressão, lutava contra a insônia e sentia dores na nuca e nas costas, sobre as quais reclama constantemente em seus diários.
O título do livro, El zorro de arriba y el zorro de abajo – cuja tradução seria “a raposa de cima e a raposa de baixo” –, faz referência a dois personagens mitológicos de lendas indígenas compiladas no final do século XVI e início do XVII pelo religioso pregador Francisco de Ávila, na província de Huarochirí (no departamento de Lima). Arguedas traduziu essas lendas do quéchua para o espanhol na obra Dioses y hombres de Huarochiri, de 1966.
A lenda conta que as duas raposas encontraram a colina Latausaco, em Huarochirí, ao lado de Huatyacuri, filho do deus Pariacaca (deus inca das águas e das tempestades), que dormia. O mundo, assim, se encontrava dividido em duas regiões, de onde se originou cada raposa: a de cima, local das montanhas e dos abismos da altura; e a de baixo, que ficava perto do mar, um estreito litoral onde não chove. São as áreas que posteriormente foram chamadas de serra e costa. As raposas, então, se tornam conselheiras de Huatyacuri, ajudando-o a vencer os desafios impostos pelo inverno do deus Tamtañamca, para depois serem observadores discretos de tudo o que acontece.
“a qué habré metido estos zorros tan difíciles em la novela?”
“El zorro de arriba y el zorro del abaojo”, de José María Arguedas
No plano de Arguedas, as raposas seriam as guias ou narradoras da história, como símbolos de cada uma das metades do Peru e que se reencontram depois de 2.500 anos no alto de uma colina que se estende sobre Chimbote, cidade esta que está situada na região “de baixo”, e que recebe milhares de migrantes da região “de cima”. É um lugar de encontro cultural, portanto, um tema muito caro a Arguedas.
A ideia era que as raposas aparecessem de vez em quando em meio aos acontecimentos narrados – como as observadoras que são. No entanto, esse plano não é muito bem-sucedido, pois as raposas só aparecem em duas ocasiões portando o seu nome na história: no fim do primeiro diário e do capítulo I; e outras vezes no capítulo II, encarnando de uma forma não muito explícita as figuras de don Ángel Rincón Jaramillo (o “zorro de abajo”) e don Diego (o “zorro de arriba”).
O livro é uma superposição de planos literários vanguardistas que recuperam planos da tradição cultural andina. O pano de fundo mítico das lendas dos zorros, de alguma forma, não se concretiza inteiramente; parece ficar no meio do caminho, porque Arguedas não consegue conciliar essa espécie de épica desses dois mundos: o plano mítico e o plano realista, calcado em uma pesquisa de campo, presentista e urbana. Não sabe muito bem o que fazer com esses “restos pós-coloniais”, uma vez que vê uma impossibilidade de pensar numa homogeneidade diante dessa cisão de mundos, dessa ruptura.
É maravilhoso ver o que autoras latino-americanas como Mónica Ojeda estão fazendo com esses “restos pós-coloniais” na literatura de seus países, criando novas tradições literárias e abrindo espaços e tempos para outros mundos bem mais interessnate.
Flipaula
Pra variar, estarei participando de várias meses nesta Flip. Segue a agenda:
23/11, quinta, 10h: Flipei - Diáspora, exílio e refúgio – entre a memória e a política, com intervenção de Johnny Salaberg e debate com Victor Graize, Marcelo Maluf, Heloisa Melino, Richemond Dacilien e Paula Carvalho.
23/11, quinta, 19h30: Casa Paratodos - Gaza, terra de poesia - Relatos de resistência e performances literárias - Felipe Benjamin (Tabla), Felipe Eugênio (Periferia Brasileira de Letras - PBL) e Juliano Fiori (Instituto Alameda), mediação de Paula Carvalho.
24/11, sexta, 10h: Casa Paratodos - Narrativas de ocupação | Tons da língua, literatura e poesia no Sul Global - Manuel Mutimucuio, Jemima Alves e Carola Saavedra, mediação de Paula Carvalho.
24/11, sexta, 15h: Casa Sete Selos - O que quer, o que pode essa língua? - Eliane Robert Moraes, Ana Paula Pacheco e Gabriela Aguerre, mediação de Paula Carvalho.
25/11, sábado, 13h: Casa Sete Selos - Um Grande Dia para as Escritoras - Cristiana Rodrigues, Irka Barrios, Maria Colarina Casati e Paula Carvalho, e mediação de Giovana Madalosso.
25/11, sábado, 19h: Casa Paratodos - Nos tornamos mulheres de sangue - Conversa com Emilienne Malfatto, vencedora do Prêmio Goncourt, sobre seu livro Que por você se lamente o tigre, com Paula Carvalho.
Pauladentro
Quarta (ou quinta), dia 29 (ou 30) de novembro, às 19h, terei o prazer de participar do Circulo de Leituras do Circolo Italiano, organizado pela Maria Carolina Casati (@encruzilinhas), lendo As pequenas virtudes, da Natalia Ginzburg.
Paulafora?
Dezembro tá chegando e vou viajar. Não sei se terei tempo/energia/disposição/inspiração pra escrever uma edição desta longuíssima newsletter no mês que vem. Então fica aqui o aviso, caso não chegue na sua caixa de e-mail. Se não acontecer, já deixo aqui meus votos de Boas Festas.