Paulatinamente #1: Unicórnios são bestas muito feias
Olá, leitora, leitor, leitore!
Esta é a primeira edição da newsletter Paulatinamente.
Com ela, quero fazer um convite para o ato de se maravilhar, de ficar estupefato ou de estranhamento. Um sentimento que, talvez, esteja se perdendo. Essa newslettter é uma tentativa de manter esse olhar para o mundo, para a cultura, para a arte, para a literatura e para o passado. De modo gradativo, paulatino, aos poucos.
A filósofa italiana Ilaria Gaspari explica, em “A vida secreta das emoções”, que
“Todavia, a maravilha – que não pode ser induzida nem simulada; mas que acontece, e deve nos pegar de surpresa para ser verdadeira – é uma emoção importante de se preservar, justamente porque nos conduz a um estado quase infantil. Ela nos quer vulneráveis, mas alegres: prontos para deixar que a vida nos arrepie, nos intrigue. Ela nos confere uma atitude aberta, espontânea, que não alcançaríamos com pose nenhuma, nem se tentássemos ser tratados com o ar mais ingênuo de que somos capazes: e ainda tem um papel significativo em nossa vida cognitiva e emocional.
Pode-se dizer que sem maravilha a filosofia não existiria: não fosse a estupefação, nenhum grego antigo vestido de quíton teria tido um arrepio de curiosidade tão forte a ponto de obrigá-lo a se fazer perguntas, a observar o céu, os fenômenos naturais, o mundo, com um olhar novo; a cair em um poço de pernas para o ar, como Tales, o primeiro filósofo, que mantinha os olhos fixos nas estrelas.”
Vamos começar aqui a nos maravilhar com os animais...
“Você está querendo criar caso por causa de um perissodáctilo qualquer, que acaba de passar por acaso diante da gente? Um estúpido quadrúpede, que nem se quer merece que se fale dele! E feroz, ainda por cima... Que além do mais, desapareceu, já nem existe. Vamos agora nos preocupar de um animal que deixou de existir!”
O rinoceronte, Eugène Ionesco
Qual seria a sua reação ao ver um unicórnio?
A série de tapeçaria “A dama e o unicórnio”
Esta foi a de Marco Polo:
“[no reino de Basman] Os unicórnios assemelham-se aos búfalos na pelagem; suas patas recordam aquelas dos elefantes. Têm um chifre bem no meio da testa, grande e negro. Não se servem desse chifre, entretanto, como arma de ofensa, mas somente da língua e dos joelhos. [...] Têm a cabeça como a dos javalis, que mantêm inclinada para o chão; amam ficar na lama e no lodo. São bestas muito feias de se ver e não são de fato como nós as descrevemos, que elas se deixam pegar como uma donzela, é justamente o oposto". (O milhão, capítulo CXLIII).
Era, na verdade, um rinoceronte.
Marco Polo não foi o primeiro nem o único a confundir um rinoceronte por um unicórnio: Plínio o Velho, escritor romano do século I, descreveu-o como "um animal muito feroz" com corpo de cavalo, cabeça de veado, pés de elefante e cauda de javali. Acreditava-se que eram animais que se originaram dos monoceros, nome dado pelos gregos antigos a uma besta com chifre. De acordo com ele, esses animais, detentores de um longo chifre preto, soltavam um grito forte. Eram impossíveis de serem capturados vivos. “Unicórnio” vem, aliás, de “unicornis”, latim para monoceros.
A descrição do unicórnio/rinoceronte de Marco Polo se assemelha à encontrada no Primeiro Livro, de autoria desconhecida, dos Relatos da China e da Índia, datado do século IX:
“Nas terras dele, há o bucha marcado, que é o rinoceronte. Ele tem um chifre no meio da testa. Em seu chifre, há uma mancha na forma de uma criatura semelhante a um ser humano. O chifre é todo preto e a imagem é branca. Esse rinoceronte é menor que o elefante, mas tem a mesma cor escura. Assemelha-se ao búfalo e é mais forte que qualquer outro animal. Ele não tem articulação nos joelhos de trás nem dos da frente; dos pés até o tronco, suas são uma peça única. O elefante foge dele. O rinoceronte rumina como a vaca e o camelo, e sua carne pode ser consumida por muçulmanos – nós a comemos. Há muitos deles nos bosques desse reino; vivem por todo o país, mas os chifres desses das terras de Dahma, são melhores. Às vezes, o chifre contém a imagem de um homem, ou de um pavão, ou de um peixe, ou outras imagens. O povo da China faz cintos a partir desse chifre e, nas terras da China, cada cinto chega a custar dois ou três mil dinares, ou mais, dependendo da qualidade da imagem.”
Ilustração de Sandra Jávera para Relatos da China e da Índia
Como explica Umberto Eco em Kant e o ornitorrinco, por analogia, Marco Polo, que nunca havia visto um rinoceronte, em vez de acrescentar um outro animal ao universo dos seres vivos, corrige a descrição dos unicórnios. Tidos como belos cavalos, em geral brancos e graciosos, com um fino chifre na cabeça, os unicórnios, na verdade, seriam “bestas muitos feias”.
Faz sentido essa descrição, pois os unicórnios vinham sendo descritos na Europa desde a a Idade Média, sendo que os 1400 e 1500 são considerados a “era de ouro” das suas representações nas artes. Não que alguém tenha realmente visto o unicórnio como o descrito nas lendas, mas havia sinais da sua existência.
Na Europa do século XV, acreditava-se que o unicórnio fosse um animal que realmente existisse na natureza, e que o seu chifre fosse portador de elementos mágicos. Reza a lenda que o unicórnio só conseguia ser capturado ao se deitar no colo de uma mulher virgem e, por isso, a cultura europeia cristã da época associava o unicórnio a Cristo. Assim, quem detivesse um de seus chifres ganharia um status de poder tanto terreno quanto celestial; além disso, supostamente, o chifre teria poderes curativos contra veneno, por isso era um dos objetivos mais cobiçados em um gabinete de maravilhas.
Nunca pensei que ainda existissem por aí: na Câmara do Tesouro Imperial dos Habsburgos, em Viena, na Áustria, um desses chifres foi transformado em uma espécie de espada para os reis da época, considerada extremamente poderosa. Acho que não era usada em batalhas mas era importante pelo poder simbólico que carregava.
Fotos tiradas por mim em Viena, Áustria
Mas já no século XVI, descobriu-se que era um animal mitológico e que o chifre que se encontrava em exposição em várias coleções pertencia a um simpático mamífero aquático que se assemelha a uma beluga e que vive nos gelados mares do Ártico, chamado narval.
"White Whale, Narwhal" illustration from "British Mammals", de A. Thorburn, 1920
DUDARD - Há a hipótese da epidemia. É como a gripe. Epidemias acontecem.
BÉRENGER - Mas nunca como esta. Será que esta veio das colônias?
DUDARD - Em todo o caso, você não pode querer que Boeuf e os outros tenham feito o que fizeram ou que se tenham transformado [em rinocerontes] no que se transformaram só para o irritar. Não teriam se dado a esse trabalho.
O rinoceronte, Eugène Ionesco
Enquanto o rinoceronte só foi visto de novo na Europa, desde o fim do Império Romano, em 1515, quando chegou em Lisboa. O então rei de Portugal, Manuel I, enviou o rinoceronte-indiano como presente ao Papa Leão X, porém o rinoceronte morreu quando o barco em que era transportado naufragou, próximo à costa da Itália, em 1516. A famosa gravura do rinoceronte de Albrecht Dürer foi baseada em uma descrição escrita e em um esboço, ambos de autores anônima, desse rinoceronte.
Rinoceronte, Albrecht Dürer
BÉRENGER - ... Tenho medo de vir a ser outro.
O rinoceronte, Eugène Ionesco
Pauladas
Brenda Lee e o Palácio das Princesas é um dos melhores espetáculos que vi em muito tempo. Além de tudo me ensinou muita história. É um musical sobre Brenda Lee, uma travesti que acolhia em sua casa localizada na rua Major Diogo, no Bixiga, em São Paulo, travestis que não tinham para onde ir. Com o avanço da aids, ela passou a receber travestis eram HIV positivo, numa época em que ainda não havia tratamento e aids era chamada de “peste gay”. Com um trabalho admirável e muita coragem, Brenda enfrentava a polícia (que prendia e matava/mata travestis a rodo), fez uma parceria com a secretaria de saúde e foi morta a tiros pelo namorado/motorista da casa que a roubava. Com leveza, muita música boa e grandes intérpretes (todas travestis), a peça do Núcleo Experimental (na Barra Funda, SP) ambientada em um cenário de cabaré merece ser mais conhecida. Vale mencionar que Veronica Valentino ganhou prêmio por sua atuação. Não é a mesma coisa, mas o musical está disponível no YouTube. O episódio #13 do podcast Rádio Novelo Apresenta também traz uma entrevista com uma das atrizes da peça, Olívia Lopes (a Raíssa, a mais amorzinho), trazendo questionamentos sobre o que é uma “voz feminina” e uma “voz masculina”.
Stalking– um conto de terror documental é outra peça que eu vi recentemente que me impactou bastante. É uma peça documental de “true crime” que conta como a própria atriz da peça, a Livia Vilela, foi perseguida pelo mesmo homem durante seis anos. A peça vai escalando de uma forma tão maluca que quando a gente vê também estamos nos sentindo sufocados pelo stalker. Esse foi um dos primeiros casos no Brasil a a ser enquadrado pela lei Maria da Penha. A dramaturgia de Paulo Salvetti, que divide o palco com Vilela, é um dos pontos altos da produção. Pra saber mais sobre essa história, tem uma matéria boa no Estadão. Vi a peça no Teatro Cacilda Becker e recentemente teve uma curta temporada no Galpão Folias. Pra quem quiser stalkear, siga a o instagram da peça @stalking_teatro.
Paulalendo
Annie Ernaux Has Broken Every Taboo of What Women Are Allowed to Write é sem dúvida, o melhor artigo que li este mês. A autoria é de Rachel Cusk, escritora que, preciso confessar, ainda não li. Pro New York Times. Tá em inglês. Um resumo: a escrita altamente pessoal de Ernaux é uma revolução dentro do patriarcal mundo literário francês (e do planeta, ainda mais depois de ganhar o Nobel). Pra reler várias vezes.
Claro que não é a mesma coisa (nem era essa a intenção), mas escrevi sobre a passagem de Annie Ernaux na FLIP 2022 pra Quatro Cinco Um.
Paulavendo
A Zerda e os cantos do esquecimento (1982), da historiadora e escritora argelina Assia Djebar, na 3ª Mostra de Cinema Árabe Feminino. Documentário feito com imagens de arquivo sobre a colonização a francesa na Argélia entremeadas por cantos tradicionais. Algumas imagens dão mal-estar por sintetizarem a crueldade e a violÇencia colonial. Pra quem quiser arriscar o francês, o filme tá disponível on-line, mas não tem legendas.
Paulaouvindo
Bitita - composições de Carolina Maria de Jesus, com produção de Sthe Araujo e grande elenco. Lançado pelo Selo Sesc, é uma releitura vibrante das composições carnavalescas da autora de Quarto de despejo. Escrevi sobre esse álgum na Quatro Cinco Um.
Pauladentro
Sexta, dia 2 de junho, às 19h, eu e a exemplar Ana Rüsche estaremos na Livraria da Tarde, em São Paulo, participando do Leituras Extraordinárias, nosso clube de livros estranhos. O livro da vez é Eu, Tituba, de Maryse Condé, e teremos a participação mais do que especial de Maria Carolina Cassatti, aka @encruzilinhas!