Paulatinamente #11: Mulheres homicidas, Anatomia de uma queda e Ana Mendieta
é mais fácil imaginar uma mulher morta que uma mulher que mata
Este texto vai tratar de um tema um tanto pesado, que me foi inspirado pelo que andei lendo, vendo e ouvindo: sobre como mulheres podem ser assassinas e não só vítimas, e como a arte pode ser usada para justificar crimes nos tribunais. Vamos à lista: o filme Anatomia de uma queda, o livro As homicidas e o podcast Death of an Artist.
O primeiro é um longa francês que ganhou a Palma de Cannes e foi indicado ao Oscar de melhor filme. Foi dirigido por Justine Triet, que escreveu o roteiro junto com seu companheiro, o ator Arthur Harari. Antes uma curiosidade leve e aleatória: umas amigas me disseram que sou parecida com Triet. Julguem por si mesmos:
Eu e Justine Triet (ou seria Justine Triet e eu?)
O filme mostra a morte do escritor Samuel na frente da sua casa nos Alpes franceses. Quem encontra o corpo é seu filho, que tem problemas de visão, junto do seu cachorro (que rouba todas as cenas). A partir daí, a trama segue a investigação: teria sido um crime de homicídio cometido por Sandra, uma escritora alemã de sucesso, ou um suicídio diante das frustrações profissionais e pessoais de Samuel?
Uma das melhores cenas é a da discussão entre marido e mulher, em que Samuel reclama por ter deixado a carreira literária de lado para cuidar do filho, da traição de Sandra com outra mulher e de ela ter roubado dele uma ideia para um romance que Samuel nunca conseguiu escrever. Ele assume, assim, o papel que, em geral, recai sobre o gênero feminino dentro de um casal. Saber se Sandra matou ou não Samuel é o que menos importa aqui.
O take já clássico de “Anatomia de uma queda”
Outra cena que me chama muito a atenção acontece no tribunal, quando o promotor do caso se utiliza de um dos livros de Sandra para tentar desmoralizá-la diante do tribunal. É uma forma de achar na sua ficção aspectos da vida real que trariam pistas para comprovar que ela era infiel, amarga e uma proto-assassina.
Não lembro se o promotor consegue colocar esse livro de autoria de Sandra como uma das provas a serem levadas em conta no julgamento (acho que não). Mas me recordo de ele tentar persuadir os juízes a levar isso em conta, tendo até marcado várias páginas que comprovariam seus argumentos de julgá-la como assassina.
Anatomia de uma queda é um caso fictício, mas o de María Carolina Geel é real. A escritora chilena é uma das protagonistas do livro As homicidas (Fósforo, 2023, com tradução de Silvia Massimini Felix), belo estudo sobre mulheres assassinas da também chilena Alia Trabucco Zerán. E a sua literatura também foi usada para julgá-la.
“é mais fácil imaginar uma mulher morta que uma mulher que mata. E não importava se eu dizia ‘mulheres violentas’ ou ‘homicidas’, o mesmo deslize, mais cultural que auditivo, conseguia apagar a imagem perturbadora de uma mulher armada e substituí-la por outra desarmada e debaixo da terra. Mulheres e assassinas eram verdadeiros antônimos, palavras que juntas eram inaudíveis, inimagináveis, a ponto de provocar desde uma curiosa surdez até as fantasias mais aterrorizantes: a aparição de bruxas, medeias, vampiras, femme fatales.”
As homicidas, Alia Trabucco Zerán
Em 14 de abril de 1955, Geel estava no restaurante do hotel Crillón, em Santiago, junto do seu namorado Roberto Pumarino, um viúvo de 28 anos que havia proposto casamento à escritora de 42 anos, que não queria se casar e havia escolhido não ter filhos. Do nada, ela aponta um revólver para ele e lhe dá cinco tiros. Ele morre na hora, e ela espera a polícia chegar, em meio à comoção geral dos clientes e da imprensa. Apesar de admitir a autoria do assassinato, até hoje é misteriosa a razão de ter feito tal ato, o que incomodava os juristas. Para ser condenada, a justificativa era necessária.
Seu advogado valeu-se de várias justificativas para impedir sua condenação, de “louca”, “ histérica” e “ciumenta” ao fato de ter entrado em um “surto”. Enquanto o processo transcorria, Geel publicou o livro Cárcel de mujeres, em que narrava o cotidiano das mulheres presas, incluindo aí algumas menções à homossexualidade feminina.
María Carolina Geel
O livro causou comoção, e o promotor, que o leu e releu, resolveu ampliar suas acusações: Geel teria matado o namorado para redigir uma obra que lhe traria popularidade. Cárcel de mujeres, então, entra como uma evidência importante no julgamento da escritora, que foi condenada. No entanto, consegue receber um indulto presidencial a pedido de outra escritora chilena: Gabriela Mistral, já ganhadora do Nobel e então diplomata. Ela tentou arrancar de Geel a razão do assassinato, mas a outra, muito discreta, desconversou em carta.
Já o podcast Death of a Artist não trata de uma mulher assassina, mas sim de uma mulher vítima de feminicídio: a artista cubana Ana Mendieta. O caso lembra bastante a trama de Anatomia de uma queda com os gêneros trocados. A jornalista Branca Vianna traça um belo paralelo entre as duas histórias em um texto publicado na revista Quatro Cinco Um.
Em resumo, Mendieta morreu em 1985 após uma queda do 34º andar do apartamento onde morava seu marido Carl Andre, conhecido como um dos fundadores do minimalismo nas artes plásticas. O artista foi suspeito de ter matado Mendieta, uma jovem artista em ascensão na época, mas o julgamento inocentou-o. Seu advogado de defesa procurou defendeu a teoria do suicídio de Mandieta, afirmando que esse destino já podia ser encontrado em algumas das suas obras de arte, como as da série “Silueta”. Ou seja, nas palavras dele, já daria para ver Mandieta flertando com o suicídio nas suas obras. Uma justificativa, no mínimo, rasteira.
Obra da série “Silueta”, de Ana Mendieta
É interessante ver aqui como a produção artística entra dentro do discurso jurídico, tanto na vida real quanto na ficção.
Na mesma pegada de assassinas, tem esse texto aqui que fiz sobre Medeia:
Paulassiste
Estreei minha colaboração no canal do YouTube do Jornal Nota, o Nota TV, com a coluna em vídeo que se chama… Paulatinamente!!! Vou tentar ler nas entrelinhas de filmes, livros, músicas e obras de arte pra trazer novas leituras dessas produções culturais, vendo além da superfície. O primeiro vídeo é sobre as influências árabes e islâmicas em Duna: Parte 2, filme que adorei! Quem quiser, pode ver aqui! (E ajuda a moça aqui e dá um like no vídeo)
Pauladentro
Dia 2 de abril, terça-feira, às 19h30, vou participar de um evento muito legal! O Ciência no Cinema no REAG Belas-Artes, em São Paulo, que reúne cientistas e estudiosos da literatura! Vou falar sobre o filme Pobres Criaturas, que deu o Oscar de melhor atriz pra Emma Stone e vem causando discussões acaloradas nas redes. Vou falar sobre a Bella Baxter viajante. Estarei junto com a escritora Cláudia Fusco, o professor João Cortese e o biólogo Michel Naslavsky. Os ingressos já estão à venda!
O próximo encontro do Leituras Extraordinárias, clube de leitura que coordeno com a Ana Rüsche na Livraria da Tarde, acontece
18 de abril, quinta: Marinheira do mundo, de Ruth Guimarães. (Primavera Editorial). Com a participação de Carolina Ferreira.