Paulatinamente #12: "Pobres Criaturas", Bella Baxter viajante
É na viagem que Bella encontra a liberdade, mas é nela também que a personagem se “civiliza”
Este mês fui a um dos eventos mais legais de que participei: o Ciência no Cinema, que acontece mensalmente no Belas Artes, um cinema de rua aqui de São Paulo. Eles passam um filme com algum fundo científico e chamam especialistas em literatura e ciência para um debate após a sessão. Eu fui uma das convidadas pra falar do filme Pobres Criaturas. Aqui uma foto do final do evento com os outros debatedores:
Claudia Fusco, João Cortese, Michel Naslavsky, eu e Analu Sério, a organizadora das sessões
O debate foi muito legal! Antes dessa conversa, eu já tinha gravado um vídeo pra minha coluna em vídeo do Paulatinamente do NotaTV no YouTube. Dá pra ver aqui embaixo.
É um tema tão rico e interessante que resolvi meio que resumir na forma de texto o que foi discutido na sessão do filme e o que falo no vídeo. (Também confesso que estava meio sem ideias pra newsletter deste mês e não consegui tirar nada da cachola).
Pra começo de conversa, preciso dizer que eu adorei o filme do Yorgos Lanthimos, é um dos que eu mais gostei de ver este ano (pra mim, até agora, só perde pra Saltburn, outro longa polêmico), mas isso não significa que a gente não fazer uma análise crítica das coisas que adoramos. Também já vou deixar claro que pra mim não faz muito sentido discutir se o filme é feminista ou não (bom, ele não é, já deixo aqui minha opinião), pois seria reduzir a sua complexidade, porque ele realmente É complexo e mexe com várias das nossas pré-concepções e pré-conceitos. O longa não teria tantas camadas se não fosse a interpretação magistral da Emma Stone como Bella Baxter, em seu melhor papel. Dito isso, quero falar um pouco sobre Bella Baxter viajante e como o arco da personagem segue os moldes das narrativas coloniais do século XIX, pois a própria viagem é um leitmotiv desse tipo de literatura.
Pra quem não sabe, o filme conta a história da personagem Bella Baxter, que ganha vida depois de ter o cérebro do seu bebê implantado na sua cabeça pelo doutor Godwin (o grande Willem Dafoe). E assim ela vai crescendo em uma casa super protegida. Mas ela tem o desejo de sair de casa e conhecer o mundo. Bella consegue realizar esse desejo ao se envolver com Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo, hilário), um mulherengo rico e mais velho que se apaixona por ela. Daí, ela viaja para vários lugares e começa a passa a ter experiências na sua vida. Ou seja, ao sair para o mundo, ela cresce.
Emma Stone como Bella Baxter
A própria origem imaginária familiar de Bella remete à viagem: seus pais, segundo Godwin, eram exploradores e teriam morrido no Peru. Mais pra frente, ela vai dizer que tem o mesmo sangue explorador dos pais. Desde cedo, ela já mostra ter fascínio por outros lugares na cena em que, junto com Martin McCandless (Rami Youssef), seu futuro noivo, vê uma série de mapas do mundo e de países, e ela pergunta pra ele os nomes dos lugares. É uma cena bastante comum nas narrativas coloniais que lembra o escritor Joseph Conrad (1857-1924) que, quando criança, dizia sonhar em visitar os “pontos vazios” que via nos mapas que representavam o continente africano. Não é o caso de Bella, mas é a mesma energia daqueles personagens que giram um globo terrestre de olhos fechados e o lugar para onde o seu dedo cair é para onde eles viajarão (lembro muito bem de uma cena assim no começo de O último rei da Escócia). O mundo, para esses personagens (em geral, homens cis brancos), é um playground, onde eles podem se locomover com facilidade justamente por serem quem são.
Segundo Ella Shohat e Robert Stam, em Crítica da imagem eurocêntrica, “a aura de cientificismo criada por imagens de mapas e globos também ajudou a legitimar as narrativas coloniais”, uma vez que a ciência da geografia que estava então em formação acabava por refletir-se em narrativas de viagem e na ficção do explorador, que giravam em torno do “desenho ou do deciframento de um mapa” e da “autenticação desse mapa através do contato com a terra ‘recém-descoberta’”. Em outras palavras, “a inscrição cartográfica europeia, com a chancela da bússola, determinou o prestígio e a importância dos lugares”, sendo que os títulos e as legendas dos mapas, assim como os desenhos de lugares e personagens, narravam a “história completa da transformação do desconhecido em conhecido”.
Gosto muito das cenas em que ela sobe no telhado e olha pra cidade em volta, pra Londres, que é um lugar que o Godwin não dá acesso pra ela, apesar de estar ali do lado. Ela tem esse desejo de liberdade, de se locomover como e quando ela quiser. O que tem mais além da casa onde ela mora? Ela tem uma curiosidade muito grande pela vida, e pra ela a vida é um experimento, porque ela tem esse olhar de cientista que aprendeu com o Godwin. Então, o corpo dela, o mundo ao redor dela são espaços que ela vê como um grande experimento.
Bella e Duncan no teto da casa de Godwin
Na primeira saída em Londres, o criador dela, o Godwin, leva-a pra um parque, onde tem uma natureza mais domada, controlada, onde fazem um piquenique. Ele acha que isso vai saciar a sede dela de conhecer o mundo. O que é um grande engano, porque a Bella quer viver experiências por ela mesma.
O primeiro lugar que a Bella vai visitar mesmo é Lisboa, a capital de Portugal, onde ela come um monte de pastel de belém. Lisboa vai ser o lugar em que ela vai ter as primeiras experiências fora do controle do pai, e daí ela vai se aventurar e ir atrás de experiências novas, inclusive com o corpo dela. O sexo com o Duncan lhe dá muito prazer, assim como dançar. Bella quer sair pra vida, porque pra ela a vida é um experimento.
Bella Baxter em Lisboa
Claro que Duncan é outro homem que quer aprisionar Bella, além do pai e do noivo num primeiro momento. Então, pra isso, ele resolve fazer uma viagem de navio, porque ela não teria pra onde ir por estar cercada pelo mar. Mas é justamente no navio que ela conhece Martha e Harry. Martha é uma mulher mais velha que empresta livros pra Bella, que começa a ler e a viajar nos seus próprios pensamentos, assim como ter discussões intelectuais tanto com seus novos amigos, o que faz com que Duncan fique com ciúmes e se sinta ameaçado por esse despertar intelectual dela. E é no navio que a linguagem falada de Bella começa a ficar mais sofisticada e menos de bebê, da mesma forma que seus movimentos corporais.
Aí vem pra mim um dos momentos mais interessantes que é a parada na cidade de Alexandria, que fica no Egito, na costa do mar Mediterrâneo, no norte da África. Lá, ela vai jantar em um restaurante que fica numa área mais alta, onde só tem gente rica comendo, e lá embaixo tem pessoas muito pobres trabalhando no que parece ser uma mina. E é ali que ela conhece a pobreza e a desigualdade, apresentada pelo Harry (o tropo do magic negro, talvez, cuja função é ser mais sábio que o protagonista, ajudando-o no seu crescimento pessoal?). E isso a deixa dilacerada, descobrir que o mundo é injusto. Alexandria, que já foi uma das cidades mais ricas e intelectualmente progressistas do mundo, inclusive no século XIX, aparece no filme como um lugar completamente distópico, pobre, com uma desigualdade social muito grande e também um local de opressão.
É no Egito, numa cidade no que é considerado o “Oriente”, localizada na África, dois continentes que foram colonizados pelos europeus, que ela vai conhecer a pobreza, e não na Europa. Como se na Europa não tivesse pobreza, opressão, desigualdade social. Ela tenta resolver esse problema, que é estrutural mas ela não sabe disso, de um modo bem simples e infantil: pegando o dinheiro do Duncan e querendo entregar esse dinheiro pros pobres que estão lá embaixo. Mas como ela é muito ingênua, acaba entregando o dinheiro pra dois marujos que mentem, dizendo que vão distribuir a riqueza mas acabam embolsando pra eles. Essa é uma representação bem problemática que eu vejo no filme, que só reitera estereótipos sobre esses lugares. É uma visão que chamamos de “orientalista”, pra pegar o termo ressignificado por Edward Said.
A Alexandria de “Pobres Criaturas”
Com isso, ela e Duncan ficam sem dinheiro pra continuar a viagem de barco, e acabam descendo em Marselha, e de lá, vão para Paris. Lá, ela acaba trabalhando como prostituta em um bordel ao mesmo tempo que se desenvolve intelectualmente (ela conhece o socialismo, por exemplo, apresentado pela prostituta inette —outra incorporação do magic negro na trama?). A Paris do filme é uma Paris meio sórdida, dos bordéis, dos bas fond, com aquela atmosfera dos livros da Colette, mas também o centro intelectual europeu, porque é lá que ela vai se tornar uma verdadeira adulta.
E quando ela volta pra Londres, ela já é um ser sujeito completo, uma personagem totalmente formada, que é quando também ela resolve se tornar médica e, para tal, enfrenta o seu último obstáculo, o marido da Victoria, sua identidade antes de se suicidar e se tornar a Bella Baxter. Ela consegue, por fim, fugir dele e, ao final, se torna dona da casa e da riqueza de Godwin, está estudando para se formar médica, rodeada de seus amigos e experimentos. Um final bastante feliz, portanto.
Pobres Criaturas é, ao fim e ao cabo, um romance de formação com um cenário de fundo de uma narrativa imperialista-colonialista. Porque o mundo está aberto pra Bella, o mundo é o seu playground. O mundo está ali pra ela poder viver todas as experiências possíveis. E mesmo que Bella tenha passado por maus bocados, esse mundo não deixou de ser gentil com ela. Primeiro, porque ela é de uma classe social mais alta, os homens com quem ela se relaciona têm dinheiro, então ela consegue viajar pra conhecer esses lugares. Ela é desejada, porque é jovem, bonita, magra e branca, que acabam sendo marcadores de privilégio. Dentro da história do filme, Bella só consegue se tornar um sujeito em si mesma porque ela tem essas características.
Mesmo ambientado em um do mundo fabuloso, sem uma época temporal específica, Pobres Criaturas ainda está calcado nos tropos do romance do século 19, então o desenvolvimento dessa personagem não aconteceria se ela fosse uma mulher negra, uma mulher árabe, muçulmana, uma mulher de classe mais baixa. Só trago essa questão pra entender que essa não é a trajetória universal da mulher, porque isso não existe. A gente tem que entender a trajetória da Bella também levando em conta o corpo em que ela está, inclusive porque ela preza bastante esse corpo e os experimentos a que ele é submetido.
É na viagem que Bella encontra a liberdade, mas é nela também que a personagem se “civiliza”. É uma narrativa evolucionista, pois se ela começa como uma protagonista completamente" “indomável”, meio animalesca, infantilizada, termina como uma mulher dona dos seus próprios meios, pronta para assumir a sua casa, sua profissão, seu lugar no mundo, substituindo Godwin, ou seja, alguém “civilizada”. Nesse sentido, Pobres Criaturas traz uma narrativa conservadora.
Na minha opinião, o caráter realmente subversivo da personagem é o fato de ela não se ver como vítima em nenhum momento. Vítima de abusos sexuais, de violência, assédio, opressão. Muitos de nós a vemos assim, mas ela mesma não. A mente dela é de uma cientista, foi assim que ela aprendeu as coisas e é assim que ela continua sendo. Ela vê tudo como um grande experimento, e por isso quer viver tudo que puder, inclusive as coisas ruins. Bella consegue ter, claro, um distanciamento que nenhum de nós conseguiríamos. Essa é a sua verdadeira subversão.
Paulanota
Minha colaboração com o Jornal Nota continua! Este mês fizemos muitos conteúdos sobre o filme A paixão segundo G.H., que estreou este mês nos cinemas: resenha + entrevista em texto. Se quiserem ouvir, tá aqui:
Em Pilhados
Este é um podcast/videocast que eu e o Luiz Ribeiro, do Jornal Nota, estreamos este mês. Todas as sextas às 15h, a gente discute ao vivo um tema ligado à literatura, traz as notícias literárias da semana e dicas culturais. Os episódios estão disponíveis no YouTube e no Spotify:
Episódio 1: Censura na literatura: Jeferson Tenório e Prêmio Sesc de Literatura
Episódio 2: Legado póstumo: o autor morreu, o que fazer?
Episódio 3: Inteligência Artificial na literatura: pode isso?
Pauladentro
Segunda, dia 22, às 19h, vou participar de uma live no Instagram com a Amora Livros para falar do livro Correio Noturno, de Hoda Barakat.
Quarta, dia 24, às 19h30, participo do Clube do Livro da Tabla. Vamos conversar sobre O tumor, de Ibrahim al-Koni!
Quinta, 9 de maio, às 19h, participo de uma conversa na Janela Livraria, no Rio, sobre o livro A queda do imã, de Nawal el Saadawi, com Murilo Sebe Meihy.
Nas quartas-feiras de maio, às 19h, vou dar um curso na livraria Aigo, no Bom Retiro: A Ásia a partir da literatura! As inscrições para o curso presencial acabaram, mas vamos tentar montar um curso on-line em breve.
Na segunda, dia 27 de maio, às 19h, o Leituras Extraordinárias, meu clube do livro com a Ana Rüsche na Livraria da Tade, conversará sobre Exploração, de Gabriela Wiener.