Paulatinamente #13: Bebê Rena, Nanette, Stalking e os limites do humor
Preciso contar a minha história do jeito certo
Eu fui pega pelo hype e assisti Bebê rena, e que impacto que causou em mim! Pra quem ainda não sabe, conta a história de Donny Dunn (Richard Gadd), um barman que quer ser comediante standup, que passa a ter um relacionamento estranho com Martha (Jessica Gumming, maravilhosa e generosíssima com sua personagem), uma cliente que entra no bar para tomar água. Sentindo um pouco de pena, Donny lhe serve um chá e esse ato de gentileza, além e várias outras atitudes, faz com que ela ache que ele tem um interesse amoroso-sexual nela; a partir daí, Martha passa a stalkeá-lo. Outro detalhe importante é que a história é baseada nas vivências do próprio Gadd.
Num primeiro momento, essa parece ser a premissa da série, mas Bebê rena não é exatamente sobre isso. Muita gente já escreveu ou deu sua opinião sobre a série (tendo visto ou não), em especial pelo fato da personagem que stalkeia o protagonista estar em um corpo gordo. Nesse sentido, recomendo demais a leitura do texto que a Jessica Balbino escreveu em sua coluna no jornal Estado de Minas.
Richard Gadd em Bebê rena
Até aí, enquanto via a série, eu me lebrava direto de uma peça incrível que vi ano passado chamada Stalking — Um conto de terror documental, em que a atriz Livia Vilela conta como foi stalkeada por um homem a partir de experiência própria, valendo-se de emails escritos por ele, assim como de áudios enviados pelo criminoso. As coisas vão escalando e ela finalmente consegue uma medida protetiva contra — uma das primeiras em que um caso de stalking foi enquadrado na Lei Maria da Penha. Ela divide o palco com Paulo Salvetti (também responsável pela excelente dramaturgia), que faz vários papéis, inclusive o do stalker.
Livia Vilela em Stalking - Um conto de terror documental
O stalking acabou com muita coisa na vida de Vilela, inclusive com seu casamento, e ela poderia ter sido morta em algum momento. Ela sabe disso. E explica logo no início que a peça foi uma forma terapêutica que ela achou para lidar com esse trauma. Então, todas as noites que Vilela faz a peça, revive o trauma. Não sei se realmente a cura vem de escrever ou recontar o trauma indefinidamente. Sou cética quanto a isso, em especial depois de estudar História, Literatura e Testemunho. Mas também acredito que o que funciona para um, não necessariamente vai funcionar para o outro. De toda forma, tanto Vilela quanto Gadd resolveram valer-se dos seus traumas pessoais para criar obras artísticos impactantes (no plano pessoal, espero que isso os ajude a conviver com essas feridas). Porque os traumas de Donny Dunn não estão apenas ligados ao stalking.
(Cuidado que a partir daqui tem muitos SPOILERS!)
Pois o episódio 4 causa uma reviravolta na história de Bebê rena, porque mostra como Donny foi estuprado sistematicamente várias vezes enquanto estava drogado por Darrien (Tom Goodman-Hill), um roteirista que havia prometido ajudá-lo a ascender na carreira. Daí é possível entender melhor o personagem de Donny (não confundam personagem com o autor, o Richard Gadd, por favor), que tem muitos problemas no modo se relaciona com as pessoas. Inclusive, esse trauma o deixa confuso quanto à própria sexualidade.
Mais pra frente, ele vai se relacionar com Teri (Nava Mau), uma terapeuta que é uma mulher trans. Ele sente desejo por ela, se apaixona por ela, mas demora para assumir isso para ele e até socialmente (a real é que ela é muito melhor que ele, e eu ficava toda hora me perguntando por que Terri continuava insistindo no Donny, enfim…)
Pois ele não corta logo as investidas de Martha, até as incentiva, uma vez que isso alimenta o seu ego (quem nunca caiu nessa dinâmica de um lado ou do outro?!), e usa sempre a gentileza e a pena como justificativas para manter esse relacionamento. Ele gosta de se ver pelos olhos de Martha, por quem se sente validado. Sua autoestima melhora com Martha, que fica à espera de qualquer migalha que ele joga pra ela.
E como Martha também tem problemas, ela passa a imaginar coisas que não existem com relação à relação com Donny — isso já era uma constante em sua vida, imaginando cenários irreais sua vida profissional e amorosa. Ao mesmo tempo, ele passa a sentir desejo sexual por Martha e a ficar obcecado por ela.
Bom, daí o que acontece? Donny, que nunca foi lá um grande comediante de standup, conta dos abusos sofridos durante um show e que marcaram sua vida. O vídeo viraliza e ele passa a fazer shows em que faz piada com o que viveu. Esse vira o seu ganha-pão, e foi isso aqui que me pegou. Da peça Stalking, lembrei na hora de Nanette, um show da comediante lésbica australiana Hannah Gadsby, que vira o standup do avesso MESMO e tá disponível na Netflix.
Nesse show, Gadsby já revela à plateia que tem se questionado sobre se deve continuar a ser comediante, pois não se sente mais confortável, uma vez que criou sua carreira em cima do humor autodepreciativo. Ela não quer mais fazer isso.
“Vocês entendem o que significa humor autodepreciativo quando vem de alguém que já existe à margem? Não é humildade, é humilhação. Eu me coloco para baixo para poder falar, para pedir permissão para falar. Simplesmente não vou mais fazer isso. Nem comigo, nem com ninguém que se identifica comigo. Se isso significar o fim da minha carreira na comédia, que assim seja.”
Hannah Gadsby em “Nanette”
Gadsby dá uma aula de como funciona o humor, e o principal é que precisa causar uma tensão antes de vir a punchline, que vai fechar a piada, o gracejo, a zombaria. Ela está cansada dessa tensão, por que ela conta a vida dela como se fosse uma piada, que só precisa de começo e meio; na verdade, sua vida precisa ser contada na forma de história, que precisa de um início, um meio e um fim.
Quando criou um show sobre como se assumiu lésbica (lembrando que a homossexualidade só deixou de ser proibida na Tasmânia, sua terra natal, em 1997), ela congelou uma experiência bastante educativa no seu ponto mais traumático e transformou-a em piada. Essa narrativa mais engraçada, através da repetição, fundiu-se à memória real do que aconteceu. Só que a versão em piada não era tão sofisticada a ponto de ajudar os traumas sofridas na realidade.
“Finais impactantes precisam de trauma”, ela explica, “porque o impacto precisa de tensão e a tensão alimenta o trauma”. Ela não se assumiu para a avó porque ainda tinha vergonha de ser quem é. “Você aprende com a parte da história na qual você foca. Preciso contar a minha história do jeito certo. O modo como contamos a história de Van Gogh não é do jeito certo. Ele não era um gênio incompreendido, ele não sabia se relacionar”, continua ela, (que se formou em História da Arte) argumentando que artistas sempre estiveram ligados ao poder e ao dinheiro, e Vang Gogh não tinha as habilidades sociais necessárias para obter sucesso financeiro naquele meio.
Hannah Gadsby em Nanette
No começo do show, Gadsby conta de como foi abordada por um homem chucro no ponto de ônibus por estar conversando com a namorada dele. O rapaz achou que ela fosse um “viado” dando em cima dela. Depois de perceber seu erro, pede desculpas e vai embora. Mas um tempo depois, Gadsby revela mais para o fim de Nanette, que ele retornou se dando conta do seu “erro”: que ela era uma mulher dando em cima da sua mulher. Por causa disso, Gadsby foi espancada, e ela se recusou a procurar um hospital e a polícia. Esse é um trauma que ela guardava por muito tempo.”
“Eu não sou uma vítima porque a minha história tem valor. Quero que saibam, preciso que saibam o que eu sei. Se alguém tira suas forças, não destrói sua humanidade. Sua resiliência é sua humanidade. As únicas pessoas que perdem a humanidade são as que acham que têm o direito de tirar as forças. Elas são as fracas. Envergar e não quebrar, isso é uma força incrível”, brada Hannah Gadsby ao final de “Nanette”
Ela queria se sentir ouvida, menos solitária, por isso conta a história do jeito que tem que ser contada. “Porque a diversidade é força, a diferença é uma professora. Você não aprende nada se te tiver medo da diferença”, afirma. Nesse sentido, “rir não é o melhor remédio. O que cura são histórias. O riso é só o mel que adoça o remédio amargo”, arremata ela.
Dito tudo isso, fico pensando: será que Richard Gadd contou a sua história do jeito certo para ele? Não tenho resposta. Mas, no final, Donny, que usava seus traumas para fazer humor, acaba virando ele próprio um stalker em potencial ao receber a gentileza de um barman que lhe oferece uma bebida de graça em um momento de desespero. O que tiro daí é que Donny continua precisando muito de ajuda.
Pauladentro
Quinta, 9 de maio, às 19h, participo de uma conversa na Janela Livraria, no Rio, sobre o livro A queda do imã, de Nawal el Saadawi, com Murilo Sebe Meihy.
Nas quartas-feiras de maio, às 19h, vou dar um curso na livraria Aigo, no Bom Retiro (SP): A Ásia a partir da literatura! As inscrições para o curso presencial acabaram, mas vamos tentar montar um curso on-line em breve.
Na segunda, dia 27 de maio, às 19h, o Leituras Extraordinárias, meu clube do livro com a Ana Rüsche na Livraria da Tade, conversará sobre Exploração, de Gabriela Wiener, e vamos ter as presenças ilustres de Pilar Bu e Vinicius Barbosa.