Paulatinamente #14: Na caverna dos dragões e em histórias sem fim
Filóstrato disse que os árabes, para se tornarem feiticeiros e adivinhos, comiam o coração e o fígado de um dragão voador
Por acaso, dragões existem? A resposta automática seria não, mas talvez a mais certeira seja: depende do período histórico.
Pois bem, em 13 de maio de 1572, quando Ugo Buoncompagni retornava para sua terra natal para se tornar Papa Gregório XIII, um tenebroso dragão apareceu em uma área rural perto de Bologna, um presságio do tempos terríveis que viriam. Logo essa notícia se espalhou e foi organizado um grupo para capturar o animal, que foi levado para dentro dos muros da cidade. O dragão ficou sob a responsabilidade do colecionador e especialista em draconologia Ulisse Aldrovandi, primo do Papa recém-eleito.
Aldrovandi expôs essa última aquisição no seu famoso museu, e o animal foi tema de poemas e de tratados naturalistas. O colecionador também pediu para o ilustrador do seu museu fazer um desenho do dragão, que foi divulgado como uma grande curiosidade natural. Esse aqui era o dragão do Museo Aldrovandi:
Dragão de 1572 (BUB, Aldrovandi, Tavole di animali, IV, 130)
A chegada do dragão causou problemas políticos para o Papa, por causa dos seus augúrios ruins, no entanto, Aldrovandi conseguiu reverter a situação ao descrever o dragão como um fenômeno natural, um exemplo da fecundidade da natureza, esvaziando-a do seu significado metafísico. Os séculos XVI e XVII marcaram a transição de descrever fenômenos naturais como “maravilhas” e não “sinais” do Além, naturalizando-os, conforme explica Paula Findlen no livro Possessing Nature. No século XIX, isso acontece no espaço do museu, onde esses fenômenos são desmitificados.
Hoje em dia, descreveríamos esse dragão como uma “serpente”. A cultura (e o período histórico) em que nascemos influencia o nosso olhar, inclusive a sua mitologia.
Em 1818, o Dicionário infernal, de J. Collin de Plancy, explica que “os dragões já deram muito o que falar, e como não mais podem ser vistos, os céticos os negam; mas Cuvier e os geólogos modernos reconhecem que os dragões existiram. Trata-se apenas de mais uma raça extinta. Eram espécies de serpentes aladas”.
Filóstrato disse que os árabes, para se tornarem feiticeiros e adivinhos, comiam o coração e o fígado de um dragão voador. Era possível visitar em Beirute o lugar onde São Jorge matou um monstruoso dragão, comumente uma alegoria para Satanás e seus demônios.
Dragão de Athanasius Kircher (1678)
Na cultura europeia, o dragão é um animal mitológico, com asas, ligado ao elemento do fogo, como muitos de nós sabemos, pois está na cultura popular, tanto nos contos de fada da Disney (Malévola se transforma em dragão para impedir que o príncipe Philip resgate a princessa Aurora) quanto na sanguinária linhagem familiar dos Targaryen em Game of Thrones. Os dragões são cuspidores de fogo, podem ser manipuladores, como o de O feiticeiro de Terramar, de Ursula K. LeGuin; sedutores como o de O Hobbit, de J. R. R. Tolkien; parceiros como na animação Como treinar seu dragão; seres assustadores com várias cabeças da série animada Caverna do Dragão.
No entanto, Falkor de História sem fim, um dos meus animais de filmes preferidos, me virou do avesso. Passei toda a infância e adolescência achando que ele era um cachorro — um cachorro estranho, mas mesmo assim um cachorro. Só adulta fui descobrir que era um dragão. E não era só eu que achava, todo o meu entorno concordava com essa informação!
Falkor (à dir.) no filme História sem Fim
A questão é que Falkor é um dragão do Leste Asiático e não um dragão europeu, e eu demorei para reconhecer isso. Nessas culturas, os dragões estão ligados a mares, rios e tempestades. Ou seja, é um animal ligado ao elemento da água e do ar, e não do fogo, como os europeus. Cultura, como já disse antes, influencia como vemos as coisas.
No Japão, eles são kami (神) menores, “divindades” com o corpo serpentino, quatro patas e sem asas, mas que podem voar. Vivem na água e no céu, exalando tempestades e relâmpagos. São sábios e poderosos, podedo ser perigosos ou cooperativos.
Dragão (1844), de Hokusai
Os dragões são criaturas da fronteira e possuem uma força sobrenatural para guardar portões e entradas. Em algumas culturas, ele é visto como símbolo de poder, como acontece na China, onde o animal é associado ao imperador. Na mitologia chinesa, ele geralmente aparece ao lado da fênix, simbolizando a relação ying-yang.
As origens do dragão são bastante obscuras, mas de acordo com o antigo mito da Mesopotâmia, o início da existência era formado por um caos primordial que depois tomou a forma de Tiamat, a deusa aquática em forma de dragão — e nome do monstruoso antagonista de Caverna do Dragão. Ela foi massacrada em uma batalha eroz contra o deus Marduk, que usou seu corpo para forma os céus e a terra.
Tiamat e Marduk
Em uma antiga história indo-ariana, um dragão feroz, que ameaçou capturar as chuvas, foi morto pelo deus Vrta-han, “exterminador de obstáculos”. Vrta-han se tornou o deus iraniano Wahrām, e depois Bahram, um rei sassânida e herói do Livro dos Reis, um importante épico do século X, de Firdawsi.
Em tempo, 2024 é o Ano do Dragão, segundo a astrologia chinesa. A previsão é de um período de prosperidade, coisas boas e sucesso. Será?
Pauladentro
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