Paulatinamente #17: A mágica de sobreviver a tiros de bala, a Dança Fantasma e a Revolta dos Boxers
Os homens brancos serão engolidos, desaparecerão, voltarão para o seu continente
A edição desta newsletter, novamente, foi um atropelo. Tinha planejado escrever uma coisa, daí em cima da hora mudei o rumo. Comecei a ser permeada pela presença de rituais espirituais em rebeliões políticas, tanto em uma monografia que li quanto em letras de músicas e leituras para grupos de estudo. Em especial, a crença de que através de rituais mágicos os corpos dos rebeldes ficariam imunes às balas atiradas por armas de fogo pelos inimigos. Precisamos, portanto, falar dos mortos.
A Dança Fantasma, ou Ghost Dance, em inglês, é uma velha conhecida minha. “Ghost Dance” é uma das minhas canções preferidas de Patti Smith. Tá no álbum Easter. E as apresentação ao vivo dela são um transe só.
Here we are, father, lord, holy ghost
Bread of your bread, ghost of your host
We are the tears that fall from your eyes
Word of your word, cry of your cry
We shall live again, we shall live again
We shall live again
A Dança Fantasma é uma cerimônia que foi criada na segunda metade do século XIX por indígenas dos Estados Unidos como uma forma de retomar suas tradições culturais. Surgiu dos profetas dos sonhos da etnia paiute do norte do país, no oeste de Nevada, que anunciavam o retorno iminente dos mortos, a expulsão dos brancos das terras ocupadas e a restauração dessas terras para os índigenas. Esses objetivos seriam conseguidos de modo mais rápido pelas danças e canções reveladas pelos profetas que visitavam o mundo dos espíritos. Era uma dança circular que criava as camisas fantasmas, ou ghost shirts, uma roupa que conseguiria repelir as balas de armas de fogo, protegendo os guerreiros. Durante a cerimônia, muitos entravam em transe, dançavam e, por vezes, tomavam alguma bebida especial. Abaixo, uma registro bem rápido de um grupo indígena que realizava essas danças como espetáculo, em 1894.
O primeiro registro de uma Dança Fantasma foi datado de 1869 pelo profeta Wodziwob, que se espalhou entre comunidades indígenas na Califórnia e no Oregon, mas logo fundiu-se a outros cultos. A segunda onda em torno dessa cerimônia aconteceu através de Wovoka, cujo pai, Tavibo, era assistente de Wodziwob. Influenciado por presbiterianos, mórmons e a Igreja Indígena Shaker, Wovoka, em 1899, teve uma visão durante um eclipse de que deveria ensinar uma nova dança com uma mensagem milenarista: os ancestrais indígenas mortos ressuscitariam e retomariam a terra que lhes foi roubada pelos brancos. Muitos indígenas passaram a ver Wovoka como uma espécie de messias, e os ritos se espalharam entre várias comunidades, em especial entre os Lakota Sioux.
“Foi dito ao povo que um novo mundo poderia ser criado a partir da dança. Haveria deslizamentos de terra, terromotos e ventanias. A terra se enrolaria como uma tapete com todas as coisas horrorosas feitas pelo homem branco - os novos animais fedidos, ovelhas e porcos, as cercas, os postes de telégrafo, as minas e as fábricas. Por baixo disso, haveria um novo-velho mundo maravilhoso como era antes da chegada dos ladrões brancos… Os homens brancos serão engolidos, desaparecerão, voltarão para o seu continente.”
John Fire Lame Deer, líder Mineconju-Lakota Sioux
Os Lakota Sioux eram um grupo nômade que sofreu muito com a política assimilacionista dos EUA de criar reservas para as comunidades indígenas, acabando com sua mobilidade e cultura. Eles eram obrigados a usar roupas dos brancos, falar inglês, seguir a fé cristã, ser subservientes e aceitar o racionamento de alimentos enviado pelo governo. Com isso, a Dança Fantasma se desenvolvou, em 1890, como uma forma de resistir a essa política de extermínio. Mas não era uma crença geral entre eles, é importante salientar.
Camisa fantama arapaho (c. 1890)
As camisas fantamas apresentavam vários símbolos que os protegeriam das balas de armas de fogo. Esse movimento chamou a atenção das autoridades, que procurou reprimir essas cerimônias em vão, culminando no Massacre de Wounded Knee, em 29 de dezembro de 1890. Nesse episódio violento, as autoridades dos EUA massacraram entre 150 e 300 lakota sioux.
Camisas fantamas dos Sioux do Massacre de Wounded Knee
Algumas “canções fantasmas” arapaho, kiowa, caddo e comanche foram gravadas pelo antrópogo James Mooney, em 1894. Dá pra ouvir alguns desses registros no site da Library of Congress, de Washington D.C. Em 1890, Mooney também tirou fotos impressionantes da cerimônia dos arapaho.
Essa crença de que rituais mágicos poderiam proteger o corpo também aconteceu durante a Revolta dos Boxers, que aconteceu na China entre 1899 e 1901. A segunda metade do século XIX marcou o interesse imperialista de europeus, japoneses e estadunidenses nos territórios chineses. A China era, na época, um país com várias sociedades secretas, dentre as quais a Sociedade dos Punhos Justos e Harmoniosos (chinês tradicional: 義和拳, chinês simplificado: 义和拳), que ficou conhecida como “boxers” por se valerem do kung fu (o boxe chinês????, como li em um site por aí) para lutar contra os invasores estrangeiros.
Foi, portanto, um movimento anti-imperialista, anticolonial e anticristão, que matou muitos estrangeiros, mas assassinou ainda mais chineses que haviam se convertido ao cristianismo e que, por isso, eram vistos como colaboradores dos invasores. Através de rituais em que queimavam papéis, acreditavam que se tornariam invulneráveis às balas das armas de fogo dos estrangeiros. Usavam turbantes vermelhos e amarelos. Algumas mulheres também lutavam nessa sociedade e ficaram conhecidas como “Lanternas Vermelhas”.
Cartão-postal retratando um boxer
Em junho de 1900, a violência crescente fez com que diplomatas, missionários, soldados e cristãos chineses se refugiassem no bairro da Legação Estrangeira na capital, Beijing, e pediram auxílio internacional. Uma aliança de oito nações enviou 20 mil homens para acabar com a chegada dos boxers a Beijing, que conseguiram apoio da imperatriz viúva Cixi, que queria a expulsão dos estrangeiros do território chinês. O cerco a Beijing durou 55 dias, com a morte de cerca de 60 estrangeiros e cententas de cristãos chineses, marcando a vitória dos estrangeiros. Isso levou ao pagamento de indenizações vultuosas do Império Chinês para os estrangeiros, que também dividiram a capital entre eles. Em 1911, a monarquia chinesa caiu.
Descobri isso por causa de uma monografia que estou lendo que compara a representação dessa revolta em dois filmes bem diferentes: o hollywoodiano 55 Dias em Pequim (1963), de Nicholas Ray, e A Rebelião dos Boxers (1976), de Chang Cheh, clássico de artes marciais de Hong Kong.
Aqui são duas horas e meia do mais puro suco de racismo hollywoodiano com yellow face, chineses caricatos, espada superando as lutas e, claro, Charlton Heston (ator que defendia o porte de armas nos EUA). David Niven está bem apático e Ava Gardner, belíssima, subutilizada. “Boxers” é traduzido nas legendas como “nacionalistas”. Os estrangeiros invasores são ameaçados por chineses irracionais e os estadunidenses são, claro, os heróis da vez.
Já esse longa é um filme nacionalista de artes marciais. Aqui vemos a história do ponto de vista chinês. Os boxers foram usados como propaganda nacionalista do governo comunista chinês como os heróis da nação. Isso é bem claro no filme, que segue a trajetória de três irmãos. Há um quê de sobrenatural no longa, porque alguns dos boxers realmente são imunes a balas e a lâminas de espadas. Aliás, a cena da luta entre um chinês e o alemão constrasta com a de Charlton Heston e a do “chinês” da produção hollywoodiana. A dublagem é um plus a mais.
Como diz Patti Smith na sua canção: “Nós viveremos de novo”!
Pauladentro
Na próxima quinta, dia 19 de setembro, às 19h, estarei mais uma vez ao lado de Ana Rüsche na Livraria da Tarde para o nosso clube Leituras Extraordinárias. Com a presença ilustríssima da querida escritora e viajante Gaía Passarelli. Dessa vez, vai ser sobre o meu livro Direito à vagabundagem: As viagens de Isabelle Eberhardt. Dá pra comprar o livro com desconto na livraria!
Fiz uma entrevista para o NotaTV com o escritor cubano Leonardo Padura, que veio ao Brasil para o clube do livro do CCBB-Rio, em comemoração aos 20 anos de lançamento de O homem que amava os cachorros.
O texto que escrevi sobre o quase centenário Dalton Trevisan para a revista Pesquisa Fapesp já está no ar!
Paulaouvindo
Depois da Beyoncé, o looping foi substituído pela fascinante drag queen Chappell Roan, com seu The Rise and Fall of a Midwest Princess. Faixa preferida: “Pink Pony Club”.
Paulavendo
O Fardo (2023), surpreendente filme do Iêmen que trata do aborto no país muçulmano com uma das leis mais restritivas à prática. Muito diálogo entre o casal em uma realidade de declínio econômico em que o nascimento de mais uma criança traria dificuldades para a família. Além disso, mostra como é também uma questão de saúde pública. Vi na Mostra de Cinema Árabe.
Sunny é uma série da inovadora produtora A24 que mostra uma mulher estadunidense (Rashida Jones, impecável) que acaba de perder o marido e o filho japoneses em um acidente de avião em um futuro em que os robôs se tornam empregados eficientes dos humanos. Tem de tudo aqui: conspirações com a Yakuza, inteligência artificial, ficção científica, amizades femininas, duplas insólitas e muito mistério. Mas, no fim, é um lindo libelo sobre a solidão humana. Tá no Apple+.
Cheguei tarde no hype, mas estou prontíssima pra ver a segunda temporada de Wandinha! Jenna Ortega me conquistou na hora e achei o roteiro bem amarrado. Enquanto isso, vou tentar ver Os fantasmas se divertem 2 nos cinemas. Tá na Netflix.
Talvez possa ser surpresa pra alguns, mas fui muito noveleira na infãncia e na adolescência. Essa faceta está voltando à tona. Comecei a acompanhar Mania de Você (nova novela das 9) e estou vendo Vale Tudo, porque nunca tinha visto uma das melhores novelas já feitas — tô no capítulo 15 e Odete Roitman ainda não apareceu!