Paulatinamente #18: "Amores Solitários", Marrocos como cenário romântico para gente branca e caricaturas de escritores
Visitar um lugar novo e exótico, conhecer o novo e exótico 'eu'. Mas você chega lá e não é nem novo nem exótico. Você é só você
Salve, pessoal, outubro já está se encaminhando para o fim e, novamente, não vou escrever o texto que tinha me planejado pra redigir para esta newsletter. Estou particularmente exausta por causa da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) e de compromissos familiares que surgiram logo em seguida. Diante disso, ando querendo ver filmes bobinhos na Netflix. Como eu adoro uma comédia romântica leve, Amores Solitários, que acabou de estrear na Netflix, logo me chamou a atenção. De quebra, há muitos escritores como personagens.
A sinopse é simples: a bem-sucedida escritora Katharine Loewe (Laura Dern, elegantérrima) vai para um retiro de escritores no Marrocos e lá conhece Owen (Liam Hemsworth, o livramento de Miley Cyrus), o par de Lily Kemp (a ótima Diana Silvers, do filme Fora de Série, que aqui é um tanto desperdiçada), uma jovem escritora em ascensão. Tentanto terminar um novo romance, Katherine acaba se envolvendo romanticamente com Owen, dez anos mais jovem e desiludido com a nova vida da namorada Lily.
Já vou esclarecer: eu gostei do filme, está bem acima da média dos filmes produzidos pela Netflix, o interesse entre os protagonistas evolui de modo crível dentro da narrativa proposta, os atores principais têm uma química inesperada e Susannah Grant (roteirista de Erin Brockovich - Uma Mulher de Talento) faz escolhas interessantes para contar essa história romântica. Entretanto, contudo, todavia, o meu raio problematizador não consegue sair de mim. E tudo bem, eu ainda consigo apreciar e gostar de alguns produtos culturais e, ao mesmo tempo vê-los com esse olhar crítico. Não me foi possível ler Cultura e imperialismo, de Edward Said, e sair incólume.
Laura Dern e Liam Hemsworth no cenário “exótico” do Marrocos
Então, vamos lá, o que me incomodou no filme? O fato de ele ter sido ambientado no Marrocos? Não, de jeito nenhum! A questão é o modo como isso é feito. Há paisagens belíssimas e — odeio dizer isso — “pitorescas”, o que deve ter sido ótimo para o Ministério do Turismo marroquino. Aliás, em 2024, o turismo representou 7% do PIB do país, e o Marrocos já registrou um aumento de 14% no número de turistas no primeiro semestre do ano em comparação com 2023 — ainda por cima vai sediar um terço dos jogos da Copa do Mundo de 2030 junto com Espanha e Portugal e o país tem o desafio de evitar que o turismo fique concentrado apenas nas cidades que sediam os jogos.
No entanto, os locais nunca são nomeados (só Marrakech na cena de abertura, quando Katherine pousa no aeroporto) e são apenas cenários para as interações entre os personagens. Um dos lugares lindos que aparecem é Chaouen, a bela cidade azul (e que me lembrou Jodhpur, no Rajastão indiano), além da costa de Essaouira, Casablanca e regiões mais interioranas, assim como o Palácio El Badi, em Marrakech. Nunca fui pro Marrocos, então o filme me deixou ainda com mais vontade de visitar o país. Ponto pro Ministério do Turismo marroquino!
O filme no original em inglês se chama Lonely Planet, o mesmo nome dos clássicos guias voltados para mochileiros que me fizeram companhia em tantas viagens (e que também devem ser problematizados), então já temos claro um viés turístico. Bom, o avião pousa em um ambiente muito quente e ensolarado, vemos vários passageiros com roupas muçulmanas e não muçulmanas no saguão do aeroporto, aquela confusão de filas, malas e muita gente na saída — definitivamente, Katherine está em um ambiente um pouco hostil. Ela mesma chega sozinha ao carro que a levará ao retiro de escritores. A autora está cansada, sem fôlego. Não vemos o rosto do motorista.
O veículo parte por estradas asfaltadas, mas cujo entorno está coberto de areia, casas sem acabamento, homens conduzindo charretes, ovelhas nas ruas, camponesas mais velhas carregando montes de feno nas costas e grupos de homens tocando instrumentos na beira da estrada, lojas de artesanato, mais charretes, tapetes pendurados ao sol para secar e, claro, os indefectíveis camelos. O carro é interrompido em seu projeto para deixar um rebanho de ovelhas passar pela estrada. A chamada “civilização” está longe.
Trecho de Amores Solitários (tirei a foto direto da TV, dá pra ver minha cabeça ali em cima refletida)
Katherine abre a janela do carro pra sentir o ar do local (e provavelmente o ar condicionado não está ligado). Ela ouve uma mensagem de voz deixada por sua editora: “Katherine, você precisa entregar logo seu romance!”. Sabemos logo de início qual o conflito da escritora, que está passando por uma espécie de bloqueio, e está se separando de um casamento de 15 anos.
A música que toca nessa sequência é uma delícia, mas me lembrou bastante a dupla malinesa Amadou & Mariam, que eu adoro. Não me passava nenhuma ideia de algo “marroquino”. Abri o aplicativo Shazam para identificar a canção: “Wassulu Don”, de Oumou Sangaré, cantora nascida no Mali. BINGO! É o nosso velho conhecido “orientalismo”, com suas estruturas de pensamento que colocam no mesmo saco tudo que vem de fora da Europa e dos EUA — isso serve não só para o “Oriente”, mas pra África, pros grupos indígenas das Américas, a lista é longa. No caso aqui, Marrocos e Mali são colocados no mesmo saco, apesar dos dois países nem fazerem fronteira um com o outro. Mas olha que gostosa essa canção!
Katherine chega de noite no local onde será o retiro: a Kasbah Ashab — na verdade, Kasbah Bab Ourika, um hotel boutique que serve como o local do retiro, situado acima das Montanhas Atlas, no Vale Ourika, ao sul de Marrakech (sim, é lindo, quero ter dinheiro para ir pra lá e fazer meu próprio retiro). Ela é recebida por um educado recepcionista chamado Hamid (o ator franco-marroquino Sami Fekkak, que poderia ter mais destaque), que pergunta onde está sua mala. Perdeu-se entre JFK e Marrocos, mas ela quer ser otimista e dizer que foi extraviada — ou seja, alguém roubou a sua mala, “obviamente” em Marrakech. A dona do local, Fatima Benzakour (Rachida Brakni, atriz francesa de origem argelina e autora de Kaddour, que reúne memórias do seu pai), não a recebeu pois está jantando com os outros autores convidados. Katherine está aliviada com isso, ela não foi lá socializar, só quer um local calmo e silencioso para terminar seu romance.
Ela fica com o melhor quarto do hotel — Benzakour quer puxar o saco da sua convidada mais conhecida. No entanto, ele apresenta alguns problemas, como falta de água — porque mesmo lugares de luxo em localidades no mundo em desenvolvimento apresentam problemas. Em algumas cenas, vemos Katherine incomodada com os funcionários tentando consertar os encanamentos — sei que isso é para efeitos de narrativa para tirá-la do quarto, mas mesmo assim… Podemos pensar que, bem, pelo menos vemos alguns personagens marroquinos no filme trabalhando no hotel, em outros filmes seria bem possível que nem aparecessem. Ah e os marroquinos falam inglês com os convidados — essa língua franca — e entre si naquele árabe do dialeto marroquino que nenhum outro árabe entende (piada interna); mas é interessante ver que Benzakour, a patroa chique, mistura árabe com francês (resquício da colonização francesa) ao conversar com Hamid, o que mostra a diferença linguística entre as classes sociais marroquinas.
Após a chegada de Katharine, somos apresentados ao casal Lily e Owen. Lily escreveu seu primeiro romance, que foi logo publicado e virou um grande sucesso de vendas. Ela está deslumbrada com as portas que se abriram e, com toda a razão, quer viver essa experiência de forma intensa. (Eu faria a mesma coisa, só não levaria o boy junto comigo.) Os escritores a quem ela é apresentada — “gigantes da literatura enquanto eu sou uma leitura de praia” — são seus ídolos, incluindo aí Katherine Loewe, com quem ela tem uma adorável interação bastante constrangedora mais pra frente.
Daí temos uma fauna de alguns estereótipos do mundo literário: a desbocada Ada Dohan (Shosha Goren), uma veterana ganhadora do Nobel de Literatura, que chama Owen de “distração”, “toalha de banho da seção executiva” e “eye candy”; Gunnar (Gustav Dyekjær Giese), o escandinavo autor de romances policiais; Patricia sem sobrenome (Bellina Logan), uma autora negra que escreveu uma graphic novel que demorou dois anos pra ficar pronta; Ugo Giaconelli (Adriano Giannini), um autor italiano cinquentão machista que teve um caso na juventude com Katharine e faz comentários inapropriados sobre o corpo das mulheres (ele elogia a bunda de Lily para Owen, que apenas comenta: “Não diga isso”); uma escritora que parece ter origem indiana, paquistanesa ou bengali que não tem nome (Heeba Shah), cuja função é ser mãe de uma criança completamente deslocada e com quem Owen se identifica; um cara chamado Bob; um autor negro, que parece ser de algum país africano e que também não recebeu nome, entre outros.
Mas o mais constrangedor de todos é Rafih Abdo (Younès Boucif), que escreveu aquela “autobiografia linda sobre sua infância como soldado na Líbia”. Por que resolveram colocar esse tema tão pesado e atual a ser comentado dessa maneira tão banal? Entrei em contato com crianças-soldado na República Democrática do Congo, e é um trauma enorme não só para as crianças, mas para as próprias comunidades. Elas são uma questão social e humanitária em vários dos conflitos do presente e a ressocialização delas é uma grande desafio para os governos. Então a banalidade dessa situação me incomodou muito, porque ele não é essencial ao roteiro. Rafih Abdo poderia ser qualquer autor de origem árabe com qualquer outra história, uma vez que sua função é fazer com que Lily se envolva sexual e romanticamente com ele para abrir espaço para o relacionamento entre Owen e Katharine.
Sim, desde à primeira vista já rola um clima entre Rafih Abdo e Lily Kemp, ele até leu e gostou do livro dela!
Não sei se retiros artísticos são assim, mas no filme ele se resume a muitos passeios turísticos (inclusive no deserto), entrevistas, ótimos jantares, sexo, baladas e uso de substâncias lícitas e ilícitas — o que tira de Owen frases extremamente moralistas diante do comportamento do Lily (“você veio aqui para usar drogas?”). Pessoalmente, acho o Owen um grande chato que combina mais com a Katharine do que com Lily.
Com isso, vamos para a relação entre Katharine e Owen. Os dois são viciados em trabalho — Katharine só quer terminar seu livro e Owen quer fechar um contrato de uma mina de carvão, ele trabalha com finanças e o roteiro tenta passar um belo pano pra ele mostrando que, apesar de ser um capitalista, tem boas intenções. Ela é uma boa ouvinte, está cansada das pessoas do mundo editorial como Owen, que desde o princípio não conseguiu se encaixar — primeiro porque ele não lê, e segundo, porque nenhum dos escritores parece interessado em conversar sobre nada que não sejam livros e processo criativo. Sabemos que o roteiro exige que Katharine seja única com quem ele consiga se conectar. Ambos também não estão interessados na viagem em si.
Em uma das primeiras conversas mais longas entre os dois, quando vão passear por Chaouen, Katharine pergunta se ele está gostando da viagem, ele responde: “Ok, eu acho”.
“Você viajou milhares de quilômetros para ‘Ok, eu acho’?”, ela retruca.
“Quer saber a verdade? Acho que não amo viajar. A coisa toda, sabe? Aeroportos e voos. Todo mundo diz que será uma experiência transformadora. Visitar um lugar novo e exótico, conhecer o novo e exótico ‘eu’. Mas você chega lá e não é nem novo nem exótico. Você é só você”, reflete Owen.
“Verdade”, ri Katharine, “Flaubert dizia que o propósito de viajar era nos tornar modestos. Sabe? Nos mostrar o espaço mínusculo que ocupamos no mundo.”
“Eu cresci com quatro irmãs. Sei bem como sou minúsculo”, responde ele, com uma despojada arrogância.
“E se morasse aqui e não gostasse da cor azul?”, pergunta Katharine para Owen
Owen é o estereótipo da pessoa que acha que tudo precisa de uma “utilidade” — como mostrado, ele é um capitalista, então o tempo precisa ser preechido com alguma atividade prática. Ao andarem a esmo por Chaouen, ele pergunta a Katharine para onde estão indo, no que ela responde: “Algum lugar novo e exótico”. Essa expressão vira uma espécie de leitmotiv do filme. É bastante cringe.
Ela retorna em outros momentos, mesmo quando não é espressada em voz alta. Quando o carro que os levará de volta para a Kasbah quebra, eles veem um monte de cabras sobre os galhos de uma árvore, algo que “não parece normal”, do ponto de vista deles. Em seguida, o irmão do motorista aparece em uma caminhonete para levá-los a um vilarejo próximo enquanto concerta o veículo quebrado. Owen vai na caçamba atrás, ao lado de uma cabra. É legal ver Owen todo almofadinha no mesmo patamar do bichinho. Claro que são bem recebidos na casa da família do motorista, com muita comida, chá, crianças, risos, idosos desdentados, vida rural, mímica, risadas etc. etc. A boa e velha hospitalidade muçulmana, que serve para enternecer os corações dos dois estadunidenses. “Novo e exótico”, repete Katharine, ao contemplar um rebanho de ovelhas. “Sim, um pouco”, retruca Owen. Gosto de pensar em como a família do motorista também os via como “novos e exóticos”.
“Algum lugar novo e exótico” é uma postura que muitos têm diante da viagem, transformando-a em mais uma forma de consumo. Que é como Owen vê a ideia de viajar. O que é preciso entender é que existem vários tipos de viagem, inclusive a que é exclusivamente consumida, e ela começa a partir da nossa expectativa, como lidamos com nós mesmos, com o entorno e os outros que habitam esse entorno. Se Owen não está aberto à transformação, ela nunca virá, não importa onde você esteja. A questão é que a transformação dele e de Katharine vem do amor este sim “novo e exótico”, que surge entre os dois. Eles não estão realmente interessados no Marrocos e nos marroquinos, assim como a história e o roteiro. É só mais um cenário para criar situações inusitadas e supostamente românticas entre os dois protagonistas. Como a história de Rafih Abdo, o Marrocos não é essencial à trama, ele só é mais um cenário para o florescimento de um romance entre gente branca. Mesmo assim, poderia ter sido tratado com um pouco mais dignidade.