Paulatinamente #19: "A Flor Guerreira", o sati na Índia e o "sacrifício" de viúvas
Existem superstições, e superstições sobre as superstições
Assisti recentemente a um k-drama que adorei: A Flor Guerreira, uma série de época sul-coreana que está disponível na Netflix. A história se passa durante o período Joseon, a última dinastia da monarquia que governou o país por 500 anos até a colonização japonesa. A protagonista é Cho Yeo-Hwa (Lee Hanee), uma viúva casta que vive na casa dos sogros e que à noite se disfarça como um justiceiro mascarado para ajudar os mais vulneráveis (por acaso, a atriz é faixa preta em taekwondo).
No meio disso, ela conhece o superintendente Park Soo Ho (Lee Jong Woo), que cuida da lei e da ordem da capital, e os dois formam uma aliança e, claro, acabam se apaixonando. Yeo-Hwa é uma personagem cativante, bem independente (diferente da maioria das protagonistas femininas dos k-dramas — ela tem um quê de A Historiadora, a minha segunda série sul-coreana preferida), e que tenta manter o otimismo diante da sua vida de viúva.
Cho Yeo-Hwa, interpretada por Lee Hanee (ou Honey Lee)
Um dos pontos altos da série é tratar temas muito pesados de um modo leve mas respeitoso. Porque falar de viúvas na época de Joseon é bem pesado em termos históricos. As viúvas tinham vidas bem espartanas: não podiam voltar a se casar, jejuavam, deviam ser obediente aos sogros, se manter casta, cuidar dos ritos fúnebres relacionados aos maridos — mesmo aquelas que nunca chegaram a conhecê-los (caso de Yeo-Hwa) ou com quem conviveram por pouco tempo —, bordar, desenhar e ler os ensinos de Confúcio sobre o comportamento das mulheres. Se tivesse contato físico com qualquer homem, a mulher poderia ter a mão amputada ou um olho extirpado. Outro destino possível era o isolamento total da viúva, que passaria o resto da vida guardando o túmulo do marido morto.
Nessa hora, lembrei de um filme indiano lindo a que assisti há muitos anos: Water (que acabei de descobrir que ganhou o título de Às Margens do Rio Sagrado e que infelizmente não está disponível em nenhum streaming por aqui), de 2005, dirigido por Deepa Mehta, e que concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Ambientada na Índia colonial dos anos 1930 diante da ascensão de Gandhi, a narrativa começa com uma garota de oito anos que se tornou viúva (!!!) e que é enviada para uma casa onde só vivem viúvas, obrigadas a se isolar da sociedade e/ou se prostituir. A sinopse é pesadíssima, mas o filme é bem lírico, apesar de triste.
A Flor Guerreira mostra ainda que havia uma espécie de concurso em Joseon entre as viúvas das classes mais altas para que uma delas fosse designada pela rainha-mãe como a “mulher mais virtuosa” (Yeolnyeo ou Yeolbu). Ganhar esse título propiciava prestígio entre as famílias dos burocratas da corte, além de isenção de impostos e acesso a cargos a posições sociais. Yeo-Hwa está no páreo, assim como outra jovem viúva do filho de um burocrata, que passa a ser pressionada pela sogra a cometer suicídio para que consiga vencer o concurso e evitar que descubram a “traição” da nora, que se envolvera com o criado de uma família rival. A “honra” da família deveria ser preservada a todo custo. Em um determinado momento, a sogra alerta que ela pode escolher se envenenar por conta própria ou morrer aos poucos de fome.
A proibição das viúvas poderem se casar uma segunda vez em Joseon veio desde o século XV e muitos assassinatos contra essas mulheres eram montados como suicídios em nome da honra da família. Da mesma forma, esse costume aconteceu em determinados períodos históricos e províncias na China imperial, também por influência cultural neoconfunciana e por razões econômicas, como acesso aos bens do homem morto.
De novo surgiu na minha cabeça um paralelo com a Índia através do sati (ou suttee), que em sânscrito significa “boa esposa”, mas que se tornou sinônimo do ritual de sacrifício da viúva que se joga na pira crematória do marido morto como uma prova de amor e devoção. É uma prática que foi descrita pela primeira vez em um relato do grego Diodorus Siculus, no século 4 a.C., mas cujas origens são difíceis de serem traçadas. Sua incidência também é irregular, não existindo de modo frequente na história da região até o século XVI, quando passou a ser relatada de modo sensacionalista em relatos de viagens europeus.
Cena de sati, guache indiano do século 19, de autoria desconhecida
A prática parece ter se difundido em especial nas províncias do Rajastão e de Bengala ao longo dos séculos XVIII e XIX durante a colonização britânica, que criminalizou essa prática em 1829 com a lei de Bentinck. Ela foi atenuada em 1837 (mas posta em prática em 1862) pelo infame Thomas Macaulay, autor do Código Penal Indiano, que afirmava que a pessoa poderia ser absolvida caso provasse que acendeu a pira por instigação da viúva; da mesma forma, o sati, em vez de ser considerado homicídio, passava a ser julgado como suicídio. Templos eram construídos em homenagem às satis, que acabavam virando locais de peregrinação.
Na Índia pós-independente foram contabilizados oficialmente 47 satis, sendo que o último foi o assassinato da jovem Roop Kanwar, de 18 anos, em 1987, que causou grandes discussões e protestos no país. Ela ficou casada com seu marido por menos de um ano e enquanto uns disseram que ela foi voluntariamente para a pira funerária, outros contaram que ela fugiu, se escondeu em um celeiro até ser tomada por rapazes, drogada por um médico (que fugiu logo em seguida), vestida com as roupas do casamento e queimada viva diante de um grande público (o sati sempre foi um “espetáculo” mórbido). A família de Kanwar só soube do ocorrido ao ler a notícia nos jornais. As autoridades também foram muito criticadas por terem deixado isso acontecer.
Roop Kanwar em foto de seu casamento
Protestos de movimentos feministas contra a prática foram contrabalançados por manifestações pró-sati, com o argumento de que era uma prática cultural hindu (e mais especificamente dos rajputes) que deveria ser protegida — entre os apoiadores dessa prática está o Bharatiya Janata Party (BJP), o partido fundamentalista hindu de extrema direita que está no poder há dez anos sob a liderança de Narendra Modi. Um julgamento foi iniciado, alguns homens foram presos e a lei que proíbe a glorificação do sati foi promulgada em 1987 (ou seja, é proibido construir templos e venerar a figura das viúvas “sacrificadas”). O caso ainda tem várias outras camadas incluindo como a influente família do marido morto de Kawar lucrou em cima do seu assassinato ao criarem um templo para venerar seu “sacrifício” e como outros homens que tentaram manter o templo aberto foram absolvidos ano passado do crime de glorificar satis.
Agora, entro em um terreno um tanto pantanoso. Sou contra esse tipo de prática, no entanto é importante entender como ele é divulgado e estudado por aí. Porque, por vezes, quando queremos defender os mais vulneráveis podemos acabar reproduzindo outras formas de opressão até mesmo de modo inconsciente e sem essa intenção. Um exemplo claro é essa matéria da BBC: Como a Índia conseguiu acabar com o costume antigo de queimar viúvas vivas na fogueira, que relata a criminalização do sati como uma atitude essencialmente feita pelos britânicos que governavam a Índia na época, naquele viés de a modernidade europeia trazendo a luz para uma tradição supersticiosa e retrógrada. Bom, não foi bem assim.
A própria intelectual indiana Gayatri Spivak, em Pode o subalterno falar?, analisa como o sacrifício das viúvas hindus foi usado como um caso de “homens brancos salvando mulheres de pele escura de homens de pele escura”. Ou seja, os colonizadores britânicos deveriam proteger as mulheres indianas do seu próprio povo, e, assim, o colonialismo viria com sua “missão civilizadora” para acabar com “costumes bárbaros” locais. Isso dá a entender que nenhum indiano era contra essa prática, o que não é verdade (por exemplo, o filósofo Ram Mohun Roy foi um dos grandes defensores do fim desse rito) — diga-se de passagem que o sati estava longe de ser praticado em todo o país, não sendo um ritual universalizado.
Ao mesmo tempo, os indianos que defendiam o sati afirmavam que as viúvas se jogavam nas piras funerárias voluntariamente, e os britânicos que atenuaram a legislação contra a prática eram a favor de políticas não intervencionistas e viam o sati como uma prática tradicional que estava no cerne da religião hindu — até hoje há discursos com esse viés.
Impressão das mãos das esposas de um marajá indiano que cometeram o sati, localizado no Forte de Jodhpur, no Rajastão
Spivak diz que não é possível encontrar a voz dessas mulheres em nenhuma dessas posições discursivas: as viúvas eram e continuam sendo silenciadas tanto pelo colonialismo europeu quanto pelas tradições locais. Há sempre um outro intermediando a sua voz, e ela nunca é ouvida. A autora demonstra, então, os perigos que existem de impedir que essas mulheres falem por si mesmas quando se tem a intenção de defender os subalternizados. É preciso, portanto, tentar criar caminhos e espaços para tentarmos ouvir essas vozes, uma vez que a subalternidade não é uma posição fixa, mas que é alterada conforme o contexto histórico e socioeconômico.
A própria ideia do sati como uma prática universalizada do hinduísmo deve ser contestada, uma vez que não é mencionada em nenhum dos livros clássicos dos Vedas, por exemplo. Ele deve ter surgido em locais de fronteira e contextos de guerra em áreas pequenas governadas por líderes hindus diante das pressões expansionistas dos governantes muçulmanos na Índia. São conhecidas e e celebradas as mortes em massa de viúvas de nobres e aristocratas, santificadas por sua coragem, mas é possível entrever, claro, elementos que mostram que elas se sentiam forçadas a escolher esse destino.
Agora, trago algumas reflexões de um dos intelectuais mais instigantes (e polêmicos) com que já me confrontei: o psicanalista e teórico social indiano Ashis Nandy, de 87 anos (só pra ter uma noção, em 1992 ele já havia descrito Narendra Modi como “fascista”). Ele escreveu extensivamente sobre o sati — alguns afirmam que ele defende a prática e é contra os movimentos feministas indianos, outros que ele problematiza o ritual. Sou mais propensa a cair pra segunda alternativa, mas existe o perigo de como esse tipo de discurso, em um mundo cada vez mais polarizado, possa ser apropriado para outros fins; de toda forma, Nandy é um pensador difícil de definir e, por isso, é instigante, me fazendo ver o mundo por outros pontos de vista.
Ele começa o texto “Sati: A Nineteenth-Century Tale of Women, Violence and Protest” com a seguinte frase: “Existem superstições, e existem superstições sobre superstições”. A lei que proibiu legalmente o sati, em 1829, segundo ele, é tida ainda como a primeira vitória do mundo moderno contra o “primitivismo e o obscurantismo do hinduísmo”. O que será demonstrado nesse ensaio é como a “epidemia” dos “sacrifícios” das viúvas que acometeu a Índia em fins do século XVIII e início do XIX foi um produto da intrusão colonial britânica na sociedade indiana. A popularidade do rito e sua abolição em resposta a um movimento reformista foram duas fases da sociedade indiana tentando lidar com mudanças sociais e culturais de larga escala, o que envolveu a invalidação e a distorção de atitudes tradicionais em relação às mulheres e à feminilidade.
Nandy explica que a legimitação gradual do rito se deve a uma série de questões: a tradução deliberadamente errada de textos sagrados pelos brâmanes (a casta mais alta e intelectualizada do hinduísmo); a dificuldade de proteger as mulheres em tempos de guerra, em especial no que se chama de Idade Média (afinal, o corpo feminino em sociedades patriarcais deve ser controlado para que a “honra” da família e do povo não seja maculada); o declínio do budismo e sua influência racionalista-pacifista; o contato com outras culturas que acreditavam que o conforto no pós-vida de um homem morto deveria ser assegurado com o enterro de suas esposas, joias, escravos e outras posses junto com ele. A popularidade do sati declinou após a Idade Média e voltou a ser praticada no fim do século XVIII na província de Bengala, sudeste da Índia, onde se localiza Calcutá.
Houve uma mudança cultural nas práticas religiosas, com as deusas Durga e Kali se tornando divindades populares, e a falta de intervencionismo do colonialismo britânico diante do sati foi visto como um apoio à prática sendo, portanto, alguns dos fatores que podem ter ajudado na difusão do ritual durante essa época.
Do ponto de vista da história econômica, o sati foi um ritual usado para controlar o crescimento populacional em locais tomados pela fome. Ao mesmo tempo, altas taxas de mortalidade e a proibição do casamento de viúvas ajudaram a limitar o acesso a mulheres em idade fértil. Em períodos de escassez, como acontecia em Bengala, as viúvas, em especial das classes mais altas, eram vistas, portanto, como sugadoras de recursos — uma boca a mais para comer e que não tinham nenhuma utilidade.
Em Bengala especificamente, houve mudanças no sistema colonial de terras e no acesso a certas funções no comércio (que antes estavam ligadas às castas) e o próprio sistema de castas (algo bem complexo e diferente do que imaginamos e do qual não vou tratar aqui) estava mudando — as relações entre elas estava sendo substituída por relações capitalistas baseadas em contratos e em tratos impessoais.
Em seguida, Nandy mostra como a maioria dos satis acontecia entre as castas mais altas e em centros urbanizados, ao contrário do que se propaga por aí: de que o sati é uma prática realizada por grupos não intelectualizados, de classes mais pobres em áreas rurais. Não é, portanto, baseado na dicotomia conflituosa entre cidade-modernidade x campo-tradição.
Além disso, o sati ajudou a manipular a distribuição de pobreza em uma sociedade com regras de propriedade extremamente rígidas. As mulheres, inclusive as viúvas, tinham acesso às propriedades do marido morto (algo que também acontecia na China e Coreia imperiais), o que colocava em risco o acesso a essa herança por parte do resto da família do esposo falecido — o ritual de sacrifício resolveria essa questão econômica. Da mesma forma que na China e Coreia imperiais, o sati se tornou uma forma de assegurar status social e da renovação da virtude feminina diante de uma nova cultura colonial.
Outra questão é que os brâmanes realmente reivindicavam privilégios econômicas para quem cometesse o sati — Nandy comenta que alguns observadores da socidade indiana afirmavam que essa prática era uma conspiração brâmane, em especial em Bengala, onde os brâmanes, ao contrário de outras partes da Índia, eram, além de líderes e intérpretes religiosos, donos de terras e financistas cooptados pelo sistema colonial.
Ilustração de 1600 da “mulher virtuosa” do livro coreano Dongguk Sinsok Samgang Haengsil-do, em que uma mulher escolhe perder as mãos e os pés em vez de ser estuprada (que terrível!)
Nandy ainda faz uma análise das mudanças psicológicas entre os brâmanes bengalis e da ideia de feminilidade surgidas durante o período colonial em Bengala, mas vou parar por aqui porque já está bem extenso. Só pra concluir, o que quero dizer com esse textão todo é que não devemos ler e aceitar passivamente esse tipo de discurso dicotômico entre “civilização X barbárie”, pois as coisas são bem mais complexas que isso. Quando questionamos essa visão de mundo abrimos espaço para que novas vozes possam vir à tona para serem escutadas, e assim, também imaginar outras histórias e outros destinos (nem que sejam ficcionais) para essas mulheres que foram e continuam sendo silenciadas.