Paulatinamente #2: Annie Ernaux e Joni Mitchell, a força da vulnerabilidade
não podia fingir que era forte, ou que estava feliz
Olá, leitora, leitor, leitore!
Esta é a segunda edição da newsletter Paulatinamente: a newsletter que é para ser lida… paulatinamente.
É engraçado como algumas leituras vão fazendo sentido à medida que elas se desenrolam simultaneamente. A vulnerabilidade é dos temas centrais de Amanhã o sexo será bom novamente, de Katharine Angel (trad. Rita Paschoali): “uma mulher que se expõe em um mundo que, ao mesmo tempo, deseja e pune esse impulso, torna-se vulnerável. A vulnerabilidade, por sua vez, provoca medo, o que facilmente se converte em desprezo ou admiração”. E é sobre vulnerabilidade de Annie Ernaux e Joni Mitchell que vamos nos maravilhar aqui.
“Desde setembro do ano passado, não fiz outra coisa além de esperar por um homem: que ele me telefonasse e viesse à minha casa. Eu ia ao mercado, ao cinema, levava a roupa para a lavanderia, corrigia trabalhos, lia, agia exatamente como antes, mas só conseguia seguir em frente porque estava muito acostumada a fazer isso tudo. […] As únicas ações que envolviam minha vontade, meu desejo e qualquer coisa da ordem da inteligência humana tinham todas relação com esse homem (…)”
Paixão Simples, Annie Ernaux
Foram essas frases que aparecem nas primeiras páginas de Paixão Simples, de Annie Ernaux, traduzido por Marília Garcia, que me tomaram de assalto neste último mês. Este se tornou até o momento o meu livro preferido da ganhadora do Nobel porque foi o livro que realmente me fez compreender na carne o seu brilhantismo e por que ela incomoda tanto parte da crítica francesa, em especial a masculina.
O que vou falar aqui não é novidade para ninguém que já entrou em contato com sua escrita: a sinceridade desconcertante com que Ernaux escreve sobre os vários momentos de sua vida. Momentos esses pelos quais muitas de nós passaram também. Momentos terríveis, difíceis, dolorosos, humilhantes, constrangedores. Como um aborto, um caso de violência doméstica na família, um desejo por um homem mais novo, um período de espera pelo ser amado. O que cria uma identificação imediata entre suas leitoras.
Annie Ernaux
A força de Ernaux está na sua vulnerabilidade, já disseram muitos críticos e leitores. E a vulnerabilidade assusta. Pois se está com o coração aberto para sofrer qualquer tipo de emoção, da alegria a tristeza profundas. Essa vulnerabilidade está encarnada na sua escrita crua, simples, precisa, direta. Não há floreios nem meias-palavras, muito menos sentimentalismo. A dura realidade é traduzida com base em uma memória que não perdoa ninguém, em especial a si mesma. Afinal, que mulher independente, “empoderada”, quer admitir isso aqui:
“O único futuro que me aguardava era o próximo telefonema dele marcando um horário. Eu tentava sair o menos possível, salvo para os compromissos de trabalho —cujos horários ele conhecia—, sempre temendo perder uma ligação dele durante a minha ausência.”
Paixão Simples, Annie Ernaux
E quem nunca sentiu isso?
Ernaux esfrega na nossa cara todas as nossas fraquezas, como indivíduos e como sociedade. Está aí seu efeito hipnotizante. É difícil de ler, mas mais difícil ainda é desviar o olhar — da sua escrita e de nós mesmas.
A literatura de Ernaux coloca sua experiência individual no centro da narrativa, mas ela se expande para se integrar à história coletiva. São essas experiências contadas de modo direto, econômico e preciso que as tornam universais. Mesmo assim, quando escreve não pensa em ninguém. “É a busca que vem de mim mesma, uma busca a partir de sensações e experiências vividas para ir ao fundo das coisas. Não escrevo para as mulheres, escrevo para mim”, disse ela em entrevista coletiva na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2022 (na qual tive o prazer de participar). “Quando escrevo, não escrevo algo sobre mim, é uma verdade geral. A escrita é um processo de criação, não podemos nos esquecer disso. Busco algo que acontece, não algo que tem em mim.”
Alguns criticaram o fato de o Nobel ter sido entregue a ela, uma autora que só fala de si mesma, que não trata de grandes questões “políticas”. Um bando de míopes (tenho lugar de falar aqui, pois tenho miopia desde os 14 anos)! Ao falar de si, Ernaux costura alguns dos grandes problemas sociais da atualidade. Suas leitoras já sabem, não vou discorrer sobre isso aqui.
Esse incômodo com a vulnerabilidade na literatura de Ernaux lembrou-me do assombro com que a cantora canadense Joni Mitchell foi recebida na cena musical dos anos 1960 e 1970. Hoje ela é considerada uma das maiores artistas vivas, e é uma das únicas artistas mulheres que alguns dos grandes astros do rock não têm vergonha de elogiar: Jimmy Page confessou que a música dela o faz chorar, e Jimmy Hendrix chamou-a, em seus diários, “uma garota fantástica com palavras celestiais”. E ela gravou uma parceria com o grande Herbie Hancock, um grande fã.
Joni Mitchell tocando no Newport Music Festival em 2022
Houve um breve período em que fui obcecada por ela, e em meio a leituras e músicas lembro que um produtor ou compositor ou músico homem depois de ouvir um de seus álbuns comentou que estava constrangido, pois ela falava TUDO naquelas canções sobre desilusões amorosas. Era muito “pessoal”. É o mesmo tipo de reação que se tem diante da escrita da Ernaux.
A primeira música que ouvi de Mitchell foi “Big Yellow Taxi”, uma das únicas que toca nas rádios.
Mas minha preferida, sem dúvida, é “Both Sides Now”, mas nessa versão do álbum Both Sides Now, de 2000. Ela escreveu a música aos 23 anos enquanto era criticada pelo marido, um músico mais velho chamado Chuck Mitchell, que fazia com que ela se sentisse inferior. Ele falou mal da música quando ela a compôs. A vingança é que ela se tornou uma das suas canções mais conhecidas desde que foi gravada em 1967 pela cantora Judy Collins.
Olha só um trecho desse letra:
Tears and fears and feeling proud (Lágrimas e medos e sentindo orgulho)
To say, "I love you" right out loud (De dizer “eu te amo” em voz alta)
Dreams and schemes and circus crowds (Sonhos e planos e públicos de circo)
I've looked at life that way (Eu via a vida dessa maneira)Oh, but now old friends they're acting strange (Ah, mas agora amigos antigos agem de modo estranho)
And they shake their heads and they tell me that I've changed (E eles balançam a cabeça e dizem que eu mudei)
Well something's lost, but something's gained (Bem, algo se perdeu, mas algo foi ganho)
In living every day (Na vida cotidiana)I've looked at life from both sides now (Olhei agora para os dois lados da vida)
From win and lose and still somehow (De ganhar ou perder e ainda assim)
It's life's illusions I recall (São das ilusões da vida de que eu me lembro)
I really don't know life at all (Eu realmente não sei nada da vida)
Mas seu álbum Blue, de 1971, é que é considerado um dos grandes marcos da sua carreira, mudando a posição do cantor-compositor na história da música. É o epítome do álbum confessional. Mitchell estava passando por um período de mudança em sua vida, tanto profissional quanto pessoal, e resolveu dar um tempo da fama. Daí ela mesma produziu esse álbum que muitos veem como uma das melhores representações daquela época.
Composto durante uma viagem por Creta, Ibiza e Paris, o álbum apresenta canções que mostram os medos, os desejos e as paixões de Mitchell na virada dos anos 1970. São canções que, como a escrita de Ernaux, mostram a vulnerabilidade dentro das relações humanas. E, como Ernaux, não há floreios nessas composições, são como diários das dificuldades pelas quais passou naquele período. E também é difícil não se identificar. Dá pra ouvir o álbum inteiro aí embaixo:
Em entrevista à revista Rolling Stone em 1979, ela falou o seguinte:
“No álbum Blue não há quase nenhum tom desonesto nos vocais. Naquele momento da minha vida, eu não tinha nenhuma defesa pessoal. Eu me sentia como um papel de celofane envolvendo um pacote de cigarros. Sentia que não tinha nenhum segredo para esconder do mundo e não podia fingir que era forte na minha vida. Ou que eu estava feliz. Mas a vantagem disso é que a música não tinha nenhuma defesa também.”
Joni Mitchell
Unidas pela vulnerabilidade, estas são Annie Ernaux, Joni Mitchell e sua arte.
Paulestras
O último mês foi cheio de eventos!
Tentando dar continuidade à minha carreira acadêmica, participei da 12ª Conferência dos Estudos Ibaditas na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, com a comunicação “Ibadismo nos relatos de viagem de Richard Francis Burton”. Ibadismo é uma vertente religiosa do Islã que se quer mostrar como uma “terceira via” entre o sunismo e o xiismo, que seria mais “tolerante” que as outras duas. Seus praticantes existem em poucos lugares, como o Sultanato de Omã e partes da Argélia, Tunísia da Líbia.
Mas o que quero contar aqui é a curiosa história dos Banu Barzal, um grupo berbere da dinastia dos Birzalidas do centro do Magreb e que governou um império situado em Carmona, na Espanha, entre 1013 e1067. Segundo histórias do norte da África, que se espalharam pelas redes sociais argelinas, os Banu Barzal teriam chegado ao Brasil e às Américas muito antes de Pedro Álvares Cabral e Cristóvão Colombo. Essa história está longe de ser verdade, mas foi ganhando um certo momentum em grupos on-line argelinos e sendo estudada desde a década de 1970 por historiadores argelinos, que encontram traços do continente americano em antigos mapas feitos por árabes do século XI e recordando o conhecimento da tecnologia náutica dos muçulmanos do Mediterrâneo. Não é uma verdade fatual, mas é muitto legal como essas histórias entram no imaginários de determinados povos.
A fortaleza moura (alcáçar) no Portão de Sevilha, em Carmona, construída no século XVI. Foto de George Edward Bonsor Saint Martin (1880-90) [Imagem meramente ilustrativa: os Banu Barzal não construíram essa fortaleza]
Também participei da conversa "Sou Uma Mulher Sozinha Indo Pela Estrada: a vagabundagem em Isabelle Eberhardt e Patti Smith", no Sesc Pinheiros, em São Paulo, a convite da querida Clarissa Galvão, que coordena o Clube Traça, clube do livro em que se discute literatura feminista. Dentro desse clube tem um ciclo que faz leituras das referências literárias de Patti Smith! Eu e Clarissa estamos combinando uma data para repetirmos a conversa presencial para o ambiente virtal! Fiquem ligados! Ah e pra quem se interessar escrevi um post no meu Instagram sobre as relações de Patti Smith com Isabelle Eberhardt.
Clarissa Galvão e eu depois da conversa no Sesc Pinheiros. Foto da Thais Naiara
E, claro, teve A Feira do Livro! Fiquei internada na praça Charles Miller entre os dias 7 e 11 de junho. Ou eu estava no estande da Tinta-da-China Brasil vendendo livros, ou estava fazendo cobertura de mesas, ou encontrando pessoas queridas, ou zanzando por aí. Pontos altos:
A mesa Filhos da Diáspora, na qual fiz mediação, com a franco-argelina Fatima Daas, autora do maravilhoso A última filha, e o querido Diogo Bercito, autor de Brimos e Vou sumir quando a vela se apagar. A conversa está no YouTube!
Vocês não percebem, mas eu estava extremamente nervosa com meu vestido de pássaros que comprei no Japão
Autografaço + mesa de lançamento do livro Um Grande Dia para as Escritoras, que saiu pela Bazar do Tempo. Este projeto é uma emoção só. Se você ainda não conhece o projeto (que virou um movimento), pode seguir a gente no Instagram: @grandediaescritoras, do qual eu e a Giovana Madalosso cuidamos. Também recomendo dar uma olhada no livro, e quem sabe comprar: são fotos e nomes de mais de 2.300 escritoras de várias partes do Brasil e do mundo!
Eu me emociono sempre que olho os rostos das mulheres segurando seus livros! Ah e quem quiser ter acesso às fotos do lançamento do livro em São Paulo é só clicar nesse link aqui. Fotos feitas e disponibilizadas pela talentosa Mayara Barbosa! Algumas fotos do dia! Ah e a mesa pode ser vista no YouTube!
As escritoras na frente do estádio do Pacaembu durante o Autografaço. Foto do meu pai
Meu exterior refletindo o meu interior durante o Autografaço. Foto do meu pai
Tatiana Nascimento, Deborah Goldemberg, Jess Carvalho, Giovana Madalosso, Esmeralda Ribeiro, eu e Natalia Timerman (faltaram Sony Ferseck, Sandra Acosta a equipe da Bazar do Tempo). Foto de Mayara Barbosa
Foto de Mayara Barbosa
Pauladentro
Quarta, dia 12 de julho, às 19h, eu e a parça Ana Rüsche estaremos na Livraria da Tarde, em São Paulo, participando do Leituras Extraordinárias, nosso clube de livros estranhos. O livro da vez é A corneta, de Leonora Carrington, e teremos a participação mais do que especial de Fabiane Secches, tradutora da obra e incansável crítica literária!