Paulatinamente #20: Relato/Retrato de um certo Oriente e os refugiados do mundo
então todas as geografias desparecem ou confluem para a pedra negra que repousa no íntimo de cada um
Enrolei muito para escrever a última newsletter do ano, tanto por questões exteriores quanto interiores. Achava que ainda não estava pronta pra falar do livro Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, quanto do filme Retrato de um certo Oriente, de Marcelo Gomes. Mas uma hora precisamos parar de postergar e enfrentar o vazio que a tela em branco nos oferece. Segue, então, a última newsletter de 2024 — e desde já, agradeço a quem lê, visualiza, compartilha e assina esta humilde mala-direta.
É preciso primeiro falar que Retrato de um certo Oriente não é uma adaptação cinematográfica de Relato de um certo Oriente. Como vi em alguma crítica por aí, é mais uma “transcriação”, pois ainda que ambas as narrativas apresentem alguns personagens em comum e tenham uma trajetória comum — a partida do Líbano para Manaus — são obras outras, que se contradizem e se complementam, tudo ao mesmo tempo.
Relato de um certo Oriente é um pequeno grande livro do autor amazonense descendente de imigrantes libaneses. Já é possível ver as sementes da saga de Dois irmãos, com personagens, ambientações, tecidos sociais, dramas e tragédias saídos do mesmo ventre literário. Para mim, a família de Relato é prima não muito distante da que aparece em Dois irmãos, e na minha mente leitora, elas acabam convivendo e se trombando por Manaus.
Na verdade, Relato possui uma intrincada estrutura narrativa, polifônica, lacunar, com histórias contadas dentro de outras histórias, a narrativa moldura — mileunanochescas, como diria Jorge Luis Borges, para adjetivar textos com uma estrutura que lembram As mil e uma noites. Uma jovem mulher não nomeada retorna à sua casa de infância, em Manaus, e tenta desvendar a história da sua família adotiva, que imigrou do Líbano para a capital amazonense em uma data não divulgada. Escreve, a princípio, no formato de carta para o irmão (também adotado pela família) que agora mora em Barcelona. Preciso avisar: a partir, a newsletter traz SPOILERS!
Retrato de um certo Oriente [Divulgação]
A partir daí, a narradora encontra várias pessoas do seu passado, que contam as suas versões da história dos seus parentes e das tragédias que os acometeram. Há certos capítulos que é possível ver a mudança da voz dos narradores, mas é algo que o leitor só descobre mais para o fim do capítulo, o que torna a experiência de leitura instigante, como um jogo, o jogo que é a literatura. No centro da trama, dois irmãos (DE NOVO!), Emilie e Emir (há também um terceiro, Emilio, mas que aparece menos no livro), de uma família cristã libanesa que resolve imigrar para o Brasil.
Emilie quer ficar, na verdade, em um convento, se tornar freira, dedicar sua vida a Deus, mas Emir ameaça se matar se ela ficar confinada naquele local e não viajar com a família. Emilie cede e ela, junto a Emir e Emilio, vão para Marselha esperar o navio que os levará a terras brasileiras. Na França, Emir supostamente se apaixona por uma mulher (uma prostituta francesa, talvez?) e some da vista dos irmãos. No dia da viagem, Emilie implora para que Emilio encontre Emir e faça-o embarcar. Emilio consegue tal feito, o que deixa Emilie feliz e aliviada (e até, por que não, vingada?) e Emir resignado com seu destino. Eles desembarcam em Recife, de onde partem para Manaus, onde se estabelecem junto a uma comunidade de imigrantes (dentre os quais o fotógrafo alemão Dorner) na cidade que foi construída sobre a riqueza e a tragédia trazida pela exportação de borracha.
Mais para frente na narrativa, descobrimos que Emir se suicidou, jogando-se no rio, causando um trauma muito grande em Emilie e no resto da família. Teria ele tirado a própria vida depois de ter deixado de viver seu amor em Marselha? Emilie teria se culpado durante a vida inteira pela morte do irmão a quem amava? É após essa morte que Emilie recebe a oferta de casamento com o comerciante muçulmano Omar, com quem tem filhos: Hakim, Samara Délia e os outros dois “inomináveis” (DOIS IRMÃOS NOVAMENTE!). Outra trama que é destaca da é a de Samara Délia, que teve uma filha fora do casamento, Soraya Ângela, que era surda e muda e morreu precocemente num acidente. O pai de Soraya Ângela nunca é revelado — ainda que eu tenha um palpite (Hakim).
O livro traz um rico relato sobre essa imigração, com um pano de fundo épico e trágico, digno das grandes sagas, com todos os altos custos que algo dessa magnitude traz para os indivíduos, além do seu caráter fantástico. Pois, sim, são mundos completamente diversos que se encontram.
“Eu mesma relutei em acreditar que um corpo em Manaus estivesse voltado para Meca, como se o espaço da crença fosse quase tão vasto quanto o Universo: um corpo se inclina diante de um templo, de um oráculo, de uma estátua ou de uma figura, e então todas as geografias desaparecem ou confluem para a pedra negra que repousa no íntimo de cada um.”
Relato de um certo Oriente, Milton Hatoum
É, por fim, o encontro com a alteridade que une o livro e o filme dirigido por Marcelo Gomes. O “relato” aqui vira o “retrato”, pois é através da imagem e dos sons que o cinema trabalha, enquanto o livro vale-se da linguagem textual. O que fica para ser relembrado não é o relato textual/gravado da narradora anônima do livro, mas imagens captadas pelo olhar dos personagens, pela lente do fotógrafo (o alemão Dorner) e por quem vê a história transcorrer no cinema.
Retrato de um certo Oriente [Divulgação]
Ao contrário do livro, a obra cinematográfica segue uma estrutura linear e cronológica, tendo como “narradores” principais os irmãos Emir (Zakaria Kaakour) e Emilie (a atriz libanesa Wafaa Céline Halawi). Gomes resolveu ter apenas dois irmãos (ELES DE NOVO!) como protagonistas do longa, retirando a presença de Emilio, assim como dos outros narradores do romance. Como no livro, Emir invade o convento para obrigar Emilie, que quer se tornar freira, a fugir do Líbano pois ele não quer lutar em uma guerra iminente para a qual certamente será convocado. E ao contrário do livro, o filme data a ação no ano de 1949. Voltaremos depois a esse ano, porque sou historiadora e datas são importantes para nos situar dentro dos acontecimentos históricos.
Eles partem para Marselha, onde existem uma série de outros refugiados esperando para embarcar para outros navios que os levarão possivelmente para algum lugar das Américas. Nessa parte, o longa passa a ter uma aura de documentário, com alguns personagens árabes explicando a razão de estarem saindo dos seus locais de origem. Uma senhora comenta da dificuldade de sobreviver na sua região, enquanto um rapaz claramente palestino afirma que foi obrigado a fugir da sua cidade natal, Yafa, localizada na Palestina histórica, por causa da presença de um invasor, as tropas israelenses. Ou seja, o homem viveu a Nakba, a “catástrofe”, para os palestinos, enquanto que para os israelenses, é o momento da criação do Estado de Israel. Só que a Nakba aconteceu em 1948, um ano antes da data em que se passa o filme, e, em 1949, o Líbano não passava por nenhuma guerra iminente. É possível argumentar: a data não é importante, o importante é a mensagem que o filme passa. Posso até concordar, mas rebateria: se a data não importa, por que datar a história em 1949 e não 1948? É apenas uma pequena observação crítico-histórica de uma historiadora cri-cri.
Esse trecho, aliás, é importantíssimo para o filme, sendo claramente um comentário mais do que urgente sobre a crise dos refugiados da atualidade e mostrando que os conflitos que assolavam o mundo há quase cem anos continuam e só pioraram. Inclusive, a presença do personagem palestino contando que fugiu da sua cidade invadida por estrangeiros é mais do que uma defesa pelo fim do genocídio em Gaza que já faz mais de um ano, com mais de 44 mil mortos, mais da metade de mulheres e crianças.
É no navio que Emilie conhece o comerciante muçulmano Omar (o ator francês Charbel Kamel) acostumado a fazer esse trajeto para levar mercadorias até o Amazonas, para a loja do tio, em Manaus. Os primeiros contatos são baseados em olhares furtivos, gestos discretos, meio sorrisos. Ele sabe falar português e ensina algumas palavras da nova língua a Emilie. No Brasil, seguem o difícil trajeto até Manaus em barcos menores onde se dorme em redes, há momentos de dança, registros fotográficos feitos por um italiano (Eros Galbiati) e conversas com locais, inclusive de origem indígena.
É nessa viagem que o envolvimento entre Emilie e Omar vai ficando mais forte, e Emir flagra os dois. Tomado por ciúme e ódio religioso, ele tenta atirar em Omar em uma briga, mas é Emir que acaba se machucando gravemente. Para tentar salvar o irmão, Emilie desce na aldeia indígena (chuto que seria terra dos sateré-mawé, mas não dá para ter certeza pois o filme não fornece essa informação) mais próxima junto com Anástasia (Rosa Peixoto), mulher indígena com quem fez amizade. Lá, os curandeiros cuidam de Emir; com Emilie, salta Omar, tomado pela culpa e pelo desejo. É ali que o amor dos dois será finalmente consumado, no meio da floresta, e após chuparem avidamente uma fruta entre as frondosas árvores que os protegem.
Retrato de um certo Oriente [Divulgação]
Nessa parte da trama, há também uma cena que faz um outro comentário sobre os conflitos surgidos há séculos e que perduram na atualidade. Um grupo de jagunços de alguns latifundiários aparece na aldeia afirmando que aquela terra é deles, ameaçando os indígenas caso não saiam dali o quanto antes. Esse trecho faz eco ao do palestino que teve suas terras invadidas e, por isso, precisou fugir.
Não é de hoje que o paralelo entre o esbulho dos palestinos e dos indígenas das Américas. O grande poeta palestino Mahmoud Darwich já havia feito essa comparação quando redigiu o longo poema “Discurso penúltimo do ‘índio vermelho’ diante do homem branco”, presente no livro Onze astros, com tradução de Michel Sleiman. Aqui alguns versos para entenderem do que estou falando:
“Mortos dormem nos quartos que vocês vão construir.
Mortos visitam seu passado nos lugares que vocês vão destruir.
Mortos passam em cima das pontes que vocês vão construir.
Mortos iluminam a noite das borboletas, mortos
chegam de surpresa para tomar um chá com vocês, vêm calmos
como os deixaram seus fuzis. E vocês, hóspedes do lugar,
deixem um lugar para seus anfitriões... vêm ditar
a vocês os termos da paz... com os mortos!
[…]
Eu disse mortos?
Não há morte.
Só trocas de mundos.”
Darwich comentou em entrevista a Subhi Hadidi e Basheer al-Baker que: “Meu poema tentou encarnar o Pele-Vermelha no momento em que ele olhou o derradeiro sol. Mas o ‘branco’ não encontrará mais repouso nem sono, pois as almas das coisas, da natureza, das vítimas ainda volteiam sobre sua cabeça”.
Voltando ao filme, SPOILERS!, Emir consegue se recuperar, mas fica amargo e triste, pois sua irmã se recusa a terminar com Omar, com quem se casa após mudar para Manaus. É no dia do casamento que Emir se joga no rio, suicidando-se. E o que ficou foram as fotografias feitas pelo fotógrafo italiano daquele dia, da viagem de barco e dos dias em família antes do suicídio do irmão.
O tom épico-trágico se manteve no filme, seguindo o livro, assim como os supostos sentimentos incestuosos entre os irmãos — que na obra de Hatoum é mais sutil que na de Gomes, ainda que se sobressaia o fato de Emir não se sentir completamente à vontade com sua própria sexualidade, algo que é evidenciado pela sua atração pelo fotógrafo italiano — que o convida a trabalhar com ele viajando pelo Amazonas registrando comunidades que vivem ao longo do rio. É interessante ver nessas duas obras o mesmo destino trágico que surge na obra de outro autor de origem libanesa: Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, transposta esplendidamente para o cinema por Luiz Fernando Carvalho. É possível que o fato de ambos os livros tratarem de mitos de origem — a chegada dos libaneses no Brasil —, os autores tenham se voltado para os tropos clássicos desse tipo de narrativa, que comumente envolvem relações incestuosas.
Dito isso, termino a última newsletter do ano com outras três dicas de filmes que tratam de temas símiles e que tive o prazer de ver recentemente:
As Nadadoras (disponível na Netflix)
E dois filmes de Karim Aïnouz, outro artista brasileiro com origem árabe, mas cuja história é tão intrincada quanto a obra de Milton Hatoum:
Marinheiro das Montanhas (disponível no GloboPlay)
E aqui o documentário que Aïnouz fez sobre o THF, aeroporto em Berlim construído durante o governo nazista alemão e que posteriormente virou um parque e, depois, um local que abriga milhares de refugiados (ele aparece também no filme As Nadadoras)
THF: Aeroporto Central (dá para alugar na Apple TV e no Google Play)
Boas festa e bom fim de ano para nós! Que em 2025 continuei a escrever paulatinamente!