Paulatinamente #21: "Nosferatu", os romani, a peste e o medo do estrangeiro
Não somos tão iluminados, pois fomos cegados pelo luz gasosa da ciência
Não é de hoje que temos narrativas que tratam o estrangeiro, o que vem de fora, como algo a ser temido e combatido. É uma das histórias mais antigas da humanidade. Drácula, de Bram Stoker, por exemplo, é um ótimo exemplo dessa metáfora. A diferença é que o personagem e a figura do vampiro caíram nas graças da cultura pop. Até fiz um vídeo antes sobre Drácula incorpora o medo do chamado “Oriente”. Quem quiser ver está aí.
Mas, calma, não vou repetir o que está no vídeo, ainda que as estruturas que moldem essas narrativas retornem como um bumerangue. Vou tratar aqui de Nosferatu, de Robert Eggers, um diretor conhecido pela sua precisão histórica obsessiva de querer os detalhes os mais fidedignos à realidade possível. Obrigou a refazerem vinte vezes um sapato feminino da época em que se passa o filme para ficar igual ao que era usado na época — o sapato aparece por 5 segundos. Ele é bem celebrado por esse tipo de coisa. Não sei se isso é um comprometimento absurdo com a própria arte ou abuso de poder trasvestido de genialidade. Não sei mesmo. Fica a questão aí para o futuro.
Para quem não sabe, o longa é remake de um clássico homõnimo do cinema mudo e do expressionismo alemão de 1922, dirigido pelo F.W. Murnau. É uma pérola. E dá medo ainda hoje. Se ainda não viu, eu te ajudo e te apresento o filme aqui embaixo. Tá no YouTube.
É uma adaptação não autorizada de Drácula. Então, para poder filmar o longa, Murnau mudou o nome dos personagens e alguns dos lugares onde se passam a trama. Se Drácula se passa na Londres da virada do século 19 pro 20, em Nosferatu a ação acontece no ano de 1838 numa cidade fictícia chamada Wisborg, que imagino que se localizasse na Confederação Germânica.
Na época a Alemanha não existia. O país só vai ser criado em 1871, liderado pela Prússia. A Confederação Germânica era um dos 20 territórios dominados pelos Habsburgos, uma dinastia real que chegou a dominar quase toda Europa, inclusive parte da família real brasileira tem sangue Habsburgo. Esses monarcas também dominavam as chamadas terras húngaras, na época, onde se encontrava a Transilvânia. Era uma região que então possuía maior autonomia dentro desses territórios, com uma dieta (uma espécie de Parlamento) própria.
É na Transilvânia que está localizado tanto o castelo do Drácula quanto do Nosferatu. No filme, a região não é nomeada, mas aparece em um mapa. Herr Knock, o patrão de Thomas Hutter, o herói da trama, mostra para ele o local para onde terá que viajar: em um “país dos Cárpatos”, uma cadeia de montanhas da Europa que é simplesmente de tirar o fôlego. Thomas terá que ir para lá para que o Conde Orlok assine o contrato de venda de uma mansão em ruínas onde ele residirá em Wirsborg.
A Transilvânia é representada, como era de se esperar, como uma região selvagem. Até até mesmo o nome “Transilvânia” remete a isso, “para além da floresta”. A floresta é o lugar do mistério, onde o ser humano não conhece, não domina, onde a razão e o chamado progresso não entraram. Era, ainda por cima, uma região de fronteira, assim como a própria Hungria e os países dos Balcãs, entre os impérios europeus (cristãos) e o Império Turco-Otomano (muçulmano). Aqui se repete o velho binômio “Ocidente-Oriente”, uma vez que essas regiões até mais ou menos do século 16 chegaram a fazer parte é dos territórios otomanos. No século 19, com o Império Otomano em declínio, essas áreas se tornaram alvo de disputa e que se encontravam mais próximas fisicamente dos muçulmanos, um dos “outros” da Europa.
E qual seria um outro “outro” da Europa? Os rom, por exemplo, que aparecem como habitantes dessa Transilvânia misteriosa e selvagem. No filme, eles são chamados de “ciganos”, como ficaram conhecidos de forma homogeneizadora grupos como os rom, os calon, os sinti, entre outros. Era assim que eram chamados no século XIX (e ainda são chamados assim por quem ainda não conhece direito essas culturas). Esses grupos se originaram da Índia e, de lá, se espalharam pelo mundo.
Nesse sentido, Eggers foi um diretor que que buscou uma autenticidade que poucos fizeram antes dele. Ele buscou até uma representatividade e uma representação mas historicamente acuradas do que em geral se faz no cinema hollywoodiano e na cultura pop. Por exemplo, todos os atores que atuam como personagens romani são atores não profissionais de origem romani, falando o dialeto romani, dançando danças romani, usando um figurino romani. E não aquele estereótipo que vemos por aí de véus vermelhos e dentes de ouro. Nesse ponto temos que admitir Eggers foi melhor que a maioria, não porque ele seja um ser humano consciente disso (não sei nada dele no campo pessoal), mas por ter feito o mínimo que as produções cinematográficas deveriam fazer.
Essas cenas, aliás, não foram filmadas na Romênia, onde hoje fica a Transilvânia, mas na República Tcheca. A produção levou os atores romani dessa região até lá, onde inclusive gravaram diálogos para obter a maior autenticidade dos atores. Quem disse isso não fui eu, claro, porque eu não sou romani. Foi o youtuber @florium, que é romani e tem um canal bem legal sobre a história e a cultura do seu povo. Vídeo aqui:
Bom, tirando isso, o filme segue o mesmo tipo de representação feita sobre esse grupo. São mostrados como supersticiosos, que dançam muito, cantam e bebem em demasia, falam uma língua ininteligível. Mesmo assim, eles são representados como caçadores de vampiros (o que eu amei)"! Mas tirando essa parte, essa cena me incomodou um pouco, porque Thomas está vendo um ritual “primitivo” desse povo, não sabendo se está sonhando ou não. Os romani adentram a floresta para matar com uma estaca no coração um vampiro que está deitado em um túmulo.
Ao mesmo tempo, tem uma jovem nua virgem em cima de um cavalo. Eggers, me desculpe, mas isso é muito batido. Não sei se isso é acurado ou não de acordo com as tradições locais, mas é aquele estereótipo dualista de vincular a mulher virginal e o desejo feminino, à floresta, à natureza, aos instintos mais animais, ao lado monstruoso do ser humano. O mesmo acontece com a personagem de Ellen Hutter, a companheira de Thomas, que, apesar de não ser mais virginal, tem uma ligação sobrenatural e carnal com Orlok, que quer ir atrás da sua amada. No final, SPOILER!!!, as mulheres precisam se sacrificar ou serem sacrificadas para apaziguar os monstros. ZZZZZZZ (pô, Eggers, nem um twistezinho nessa história? estamos em 2025, poxa)
O medo do que vem de fora também é representado pela peste que chega em Wisborg junto com Orlok. Os vampiros são vistos como uma outra praga que também está chegando na civilização, junto com os ratos, que são transmissores dessa doença fatal e que vem de regiões longíquas, no meio das montanhas, das florestas, perto ali do “Oriente”. Ou seja, todos os males vêm de fora da chamada civilização, as doenças, os morto-vivos, os sugadores de sangue, e também das mulheres e da sua sexualidade.
Pelo que eu li, não existe um consenso em torno da origem histórica da peste bubônica. Pode tanto ser da China quanto da Ásia central, quanto do Oriente Médio e até da Europa. Se alguém souber, comenta aqui. É uma bactéria que é transmitida através de ratos que entravam em navios mercantes, que faziam as rotas comerciais entre um continente e outro. E daí, a peste espalhou pelo mundo, principalmente no século 14. Desde então, foram registrados surtos da peste em vários lugares do mundo, mas em especial na Europa e na Ásia.
Lily Rose-Depp em “Nosferatu”
Em 1838, pelo que pude apurar, não houve nenhum surto muito grande na Europa. Houve surtos dessa doença na Europa, mas no final do século 19. Mas poderia ter surtos esporádicos em determinadas localidades. A parte do tratamento médico da peste na época representado no filme é um outro ponto interessante. Assim como a transformação de Herr Knock, que é um seguidor de Orlok, como o “príncipe dos ratos” (sinais de antissemitismo na história? bem possível, pois é comum a vinculação entre ratos e judeus na Europa da virada do século XIX para o XX).
De todo modo, é a própria “superstição” desse mundo encantado é que salva o mundo do monstro. Mas os únicos que acreditam no sacrifício da mulher como o antídoto para esse mal é a própria Ellen e Franz, o Von Helsing da história interpretado por Willem Dafoe. Em um momento ele fala: "Vi coisas nesse mundo que fariam Isaac Newton rastejar de volta ao útero da sua mãe! Não somos tão iluminados, pois fomos cegados pelo luz gasosa da ciência”.
Não acho que seja um filme anticiência, mas é uma história que mostra como esse aspecto mais “espiritual”, “encantado” do ser humano não deve ser deixado de lado, pois faz parte do que é ser humano. O sobrenatural, o mágico, apesar de tudo, existe.
E, por fim, vamos logo ao veredito: pra mim existem dois filmes, um de terror (que eu estava gostando) e um thriller psicossexual bem meia boca, que começa quando Thomas retorna a Wisborg. Se o longa começa bem, depois vai perdendo ritmo. Achei que faltou alma e intensidade em uma história de vampiros. Parece que o próprio Drácula foi sugando a energia do próprio filme. As intepretações também seguem o tom plano da direção (ainda que goste das atuações de Willem Dafoe e do Bill Skargard, mesmo a deste último sendo meio canastrona).
Nesse sentido, Lily Rose-Depp tinha o maior desafio pela atuação corporal exigida pelo papel de Ellen Hutter. Vi por aí gente elogiando-a. Não é ruim. Mas é que minhas retinas e meu coração ficaram impregnados com a atuação intensamente impecável de Eva Green na série Penny Dreadful, cujo arco narrativo é o mesmo de Ellen. Que saudades de Vanessa Ives!
Até a próxima edição!