Paulatinamente #22: Dahomey, As Estátuas Também Morrem, o Manto Tupinambá e a Revolta dos Malês
Tudo aqui é culto. Culto do mundo. Todo objeto é sagrado porque toda criação é sagrada. Ela lembra a criação do mundo e a continua.
Este mês vi o documentário Dahomey, vencedor do Urso de Ouro do Festival de Berlim e representante do Senegal para uma vaga de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar deste ano. Um dos concorrentes é Emilia Perez… Desperdício de vaga… podiam ter indicado esse filme instigante.
Pra quem não conhece, é um filme de uma hora escrito e dirigido pela franco-senegalesa Mati Diop, e mostra o retorno à República do Benin de 26 tesouros reais (de um total de 7 mil) do antigo Reino de Daomé, saqueados e roubados por tropas coloniais francesas em 1892. Está disponível no Mube a quem interessar.
O retorno é narrado por uma das estátuas que representa um dos reis de Daomé. As cenas iniciais mostram os objetos, dentre os quais estátuas grandes, sendo guardados dentro de caixas saindo da França. Fiquei especialmente comovida vendo o cuidado com que um dos especialistas do Benin supervisiona tanto o modo como são guardadas as estátuas quanto como são desencaixotadas para uma exposição especial ao seu país de origem. A chegada é um grande acontecimento nacional, com muita pompa e circunstância. Mas uma das melhores partes é a encenação de um debate público entre beninenses sobre o significado do retorno dessas peças. Uns reclamam que era uma jogada política dos governantes, outros dizem que o dinheiro devia ser usado para outras coisas, enquanto algumas das pessoas reclamam que é um “insulto” só 26 peças de 7000 saírem da França.
As câmeras também flagram como o público leigo e até funcionários do local onde as estátuas estão em exibição olham para elas. Os olhares dizem muito. Uma forma de reconhecimento e autoconhecimento individual e coletivo que só momentos como esses proporcionam. E tudo isso acontece na sua própria terra e não em um museu europeu. Os seus ancestrais eram grandes, e esse passado e essa grandeza foram surrupiadas pelos colonizadores, e essa é uma tentativa de restituir o que foi roubado. Um filme um tanto lento, mas precioso nos seus questionamentos, em especial na narração em off feita pela estátua, que se pergunta se realmente existe um retorno.
Esse filme me levou automaticamente a um curta que tinha visto há muito tempo. Uma pérola com um tom pessimista dirigida por Alain Resnais, Chris Marker e Ghislain Cloquet, As Estátuas Também Morrem (1953). Tem legendado no YouTube (ou aqui embaixo).
Já começa com a porrada: “Quando as estátuas morrem, elas entram na arte. Essa botânica da morte é o que nós chamamos de cultura”. Antes de serem aprisionadas em museus, esses objetos tinham vida própria, fazendo parte do cotidiano dos seus povos, com propriedades mágicas e funções cruciais para o funcionamento daquelas sociedades. Não havia rótulos como “arte” e “religião”. As estátuas faziam parte de tudo.
O filme mostra, então, algumas das estátuas (ou máscaras rituais e outras vestimentas) presentes em museus franceses — algumas dessas, inclusive, roubadas do Reino de Daomé em 1892 mencionadas em Dahomey. O telespectador funciona como um voyeur de exposições, esvaziando o poder que essas estátuas possuíam nos seus contextos originais. A câmera as aprisiona, as retalha, as fragmenta para o prazer dos nossos olhos. Como ensinou Mary Louise Pratt em Os olhos do império, o olhar não tem nada de neutro nem de inocente. Em seguida, algumas pessoas — inclusive, algumas pretas — são filmadas olhando para as estátuas encarceradas em vitrines de vidro. Vejo olhares tristes, impotentes e que não compreendem o que está à sua frente.
“Tudo aqui é culto. Culto do mundo. Todo objeto é sagrado porque toda criação é sagrada. Ela lembra a criação do mundo e a continua”, explica o narrador. Ao contrário do fetichismo do cristianismo, “a estátua não é deus, é a prece”. Segundo o filme, os brancos imperialistas se tornam os novos “deuses” para as populações colonizadas. Os gestos de criação dessas estátuas, gestos de criação do mundo, são substituídos por gestos mecânicos, para a produção de mercadorias. É a alienação elaborada pelo marxismo ilustrada em película. É bom lembrar que Chris Marker foi autor de grandes filmes com orientação de um marxista não dogmático. Um cineasta que tem um sentido do que é história extremamente apurado — Le Fond de l’Air est Rouge Partes 1 e 2 é excepcional nesse sentido. Recomendo muito. Dá pra achar obras dele no YouTube, de longas a curtas, inclusive em que trata sobre a tortura durante a ditadura brasileira.
Daí, fui para o excelente Pantera Negra (2018). “Como você acha que seus ancestrais conseguiram isso? Acha que pagaram um preço justo? Ou eles pegaram, como pegaram todo o resto?”, questiona Eric Killmonger, um dos vilões mais interessantes do mundo da Marvel, interpretado pelo carismático Michael B. Jordan. Não é à toa que parte do público torcia para ele, vendo-o como um mocinho mal compreendido. Suas intenções iniciais são completamente válidas e lógicas no enquadramento da colonialidade no qual vivemos.
É uma cena que se passa no High Museum of Art, em Atlanta, que no filme se passa como o “Museu da Grã-Bretanha”. Essa instituição não reúne artefatos históricos retirados do continente africano, mas sim exposições sobre história, cultura e arte africana e afro-americana. O que importa pra esta newsletter é como Killmonger questiona a especialista no acervo africano do museu sobre algumas das peças e como são fruto de saque e roubo de antigos impérios africanos por impérios europeus. No filme, ele rouba um dos artefatos, vindo de Wakanda e feito de vibranium. Vale a pena ver a cena toda.
Os museus, como sabemos, são instituições que foram criadas em cima da pilhagem colonial. Já faz um tempo que existem demandas pela restituição de objetos retirados de forma criminosa presentes no acervo de museus europeus. Não só na África, mas também na Ásia e na América Latina.
Em Descolonizar o museu, da grande intelectual Françoise Vergès, relembra trechos do “Manifesto pelo direito de acesso aos acervos coloniais sequestrados pela Europa Ocidental”:
“Todos esses objetos em reservas inacessíveis!
Sob o Sena em Paris,
Onde ainda dormem,
No navio escravagista,
Esses corpos removidos,
Esses restos mortais.
Ou dissimulados na periferia urbana,
Nas masmorras dos objetos”
O Brasil não fica de fora dessa geografia da repatriação de objetos levados para museus estrangeiros. Ano passado houve o aguardado retorno, após 300 anos, de um dos Mantos Tupinambá, este que estava na Dinamarca. Encontra-se atualmente em um local especial climatizado na Quinta da Boa Vista, pois faz parte do acervo do Museu Nacional, vítima de um incêndio em 2 de setembro de 2018. (Lembro que eu estava viajando na época, estava na Serra da Capivara e vi as chamas acabarem com o local, e, sim, chorei).
O manto é uma peça sagrada usada em rituais religiosos e outras cerimônias indígenas, e foi levado no período colonial durante a ocupação holandesa no século 17. A peça retornou após uma longa negociação entre a embaixada brasileira em Copenhague, o Museu Nacional do Rio de Janeiro e o Museu Nacional da Dinamarca. Existem outros em museus europeus. Os tupinambás (e nós também) ainda esperam o retorno dos outros.
O Manto Tupinambá [Museu Nacional da Dinamarca]
No dia 18 de fevereiro, inclusive, haverá a defesa de dissertação de mestrado de Gliceria Tupinambá, O feitiço do fio e a busca do Manto Tupinambá, no Museu Nacional, sobre a localização dos mantos tupinambás tirados do seu povo séculos antes. Mal posso esperar para ler esse trabalho!
Outra notícia dessa mesma seara é o retorno do crânio de um homem muçulmano que participou da Revolução dos Malês, em 1835. O crânio foi roubado há 190 anos em Salvador por um diplomata americano e faz parte da coleção do Peabody Museum da Universidade de Harvard há quase dois séculos. O retorno do crânio é pleiteado pelo Centro Cultural Islâmico da Bahia (CCIB) desde 2022, quando sua existência foi descoberta. A expectativa é que o crânio retorne nos próximos anos.
Pauladentro
Fui convidada este ano para fazer minha primeira curadoria literária! É o Cai na Prosa, projeto organizado no Sesc Jundiaí, que realiza conversas sobre livros que caem no vestibular de universidades paulistas. A mediação é do professor Fernando Bandini, de Jundiaí, e haverá intervenções artísticas de Andrea Zeppini. É voltado para o público escolar, mas também aberto para quaisquer interessados. No primeiro encontro, conversarei com o prof. Bandini sobre um dos meus livros preferidos, As meninas, de Lygia Fagundes Telles. Em breve, mais novidades sobre os próximos encontros!