Paulatinamente #23: Mike White, de "White Lotus", sabe ou não escrever bons papéis para "nativos" não brancos?
Se eu já desconfiava disso na primeira temporada, a terceira realmente me fez ficar com uma pulguinha atrás da orelha
Antes de iniciar essa edição da Paulatinamente, quero agradecer a todos os inscritos pois ultrapassamos a marca de 1.000 ASSINATURAS!!!! Estou muito feliz com isso. Nunca imaginei que teria tanta gente interessada no que passa nessa minha cabecinha. Agradeço mesmo a todo mundo!
Agora vamos ao que interessa:
E terminou a terceira temporada de White Lotus. Foi, de longe, a temporada que eu menos gostei. Número maior de episódios, ritmo mais arrastado, núcleos menos entrosados e menos conflitos de classe. Já aviso que esta edição da newsletter terá spoilers, então cuidado!
A série mostra pessoas super ricas passando férias em spas luxuosos contrastando com o cotidiano de trabalho da equipe que trabalha no hotel para ser meio que babá de gente milionária. A primeira temporada se passa numa ilha do Havaí, a segunda é na Sicília, na Itália, e a terceira, na Tailândia. E se eu já desconfiava de uma coisa na primeira temporada, a terceira realmente me fez ficar com uma pulguinha atrás da orelha. Será que Mike White, o criador de White Lotus, não sabe escrever bons papéis para os "nativos" não brancos?
A primeira temporada traz ótimos personagens e embates de classes, como o de Armand, o gerente australiano gay interpretado com intensidade por Murray Bartlett, ou a terapeuta holística Belinda, uma das poucas personagens negras da série, representada por Natasha Rothwell, dentre outros jovens bonitinhos do staff. No entanto, só há um único personagem relevante de origem indígena havaiana, ou do povo Kānaka 'Ōiwi (“povo nativo” ou "o “povo dos ossos ancestrais”) ou Kānaka Maoli (“povo de verdade”). E ele aparece pouco e não é tão bem desenvolvido.
Trata-se de Kai, feito por Kekoa Kumano (ator pouco conhecido e que parece ter trabalhado em Aquaman). Num primeiro momento, ele, que funciona como um eye-candy, parece flertar com Olivia Mossbacher (Sydney Sweeney), mas acaba se envolvendo afetivamente com Paula (Brittany O’Grady), amiga de Olivia. A minha xará viaja às custas da família da amiga e é uma personagem interessante, pois tenta performar atitudes e comportamentos das classes ricas brancas como uma forma de se adaptar a um meio hostil para pessoas negras como ela, mesmo aqueles vindos de famílias com dinheiro. As diferenças são marcadas por sutilezas e microagressões.
Paula e Kai em cena de “White Lotus”
Ela convence Kai a roubar as joias que estão no cofre do quarto do casal Mossbacher com o intuito de conseguir dinheiro para ajudar o povo de Kai (mas também para realizar uma vingança pessoal). No entanto, ele se ferra no final da história, acaba sendo descoberto e preso, Paula não o ajuda e volta para casa junto com os Mossbacher. Os de fora sempre podem voltar para o lugar de onde vieram; os “nativos” não, precisam lidar com as consequências das ações de visitantes.
É comum que a equipe que trabalha nesses resorts seja internacional, no entanto, os locais também formam o grosso do staff, então fiquei um pouco decepcionada de não ter atores e personagens indígenas havaianos com mais destaque e mais falas na trama. Por exemplo, isso não acontece quando a trama se passa na Itália, cenário da irrepreensível segunda temporada — de longe, a minha favorita.
Os primeiros takes são, inclusive, das duas jovens italianas, Mia (Beatrice Granò) e Lucia (Simona Tabasco), que querem ganhar uma grana fácil seduzindo e aplicando golpes em turistas estrangeiros cheios de dinheiro. A gerente do hotel, Valentina (Sabrina Impacciatore), também é italiana e tem um arco interessantíssimo descobrindo a própria sexualidade. O roteiro e a direção são bastante generosos com os “nativos” italianos, tanto em espaço de tela quanto em qualidade de arco dramático. Mike White, então, consegue escrever bons personagens de locais, pensei. Detalhe: são todas personagens brancas europeias.
My Brilliant Friend: Mia e Lucia, as poucas personagens que se dão bem no final
Bom, daí veio a terceira temporada. Fiquei animada. Tailândia. Prato cheio para falas orientalistas de estadunidenses ricos - vejam meu vídeo sobre orientalismo na série na forma da Victoria Ratliff, uma das minhas personagens preferidas dessa temporada, interpretada sem culpa nenhuma por Parker Posey. Quatro personagens tailandeses com algum destaque interpretados por atores de origem tailandesa.
O segurança Gaitok (Tayme Thapthimthong, ator nascido na Inglaterra de pais tailandeses e que chegou a trabalhar como segurança, garçom e guarda-costas antes de conseguir esse papel). A mentora de saúde do hotel Mook, que também faz apresentações de danças tradicionais para os turistas — à maneira de Kai na primeira temporada, se não me falha a memória — e que é interpretada pela popstar em ascessão Lalisa Manobal, a Lisa do grupo de k-pop Black Pink, que é tailandesa e que lançou recentemente um álbum solo.
Sritala, ex-atriz e uma das proprietárias do White Lotus tailandês, vivida por uma lenda viva do teatro do país, Lek Patravadi; e o terapeuta holístico Pornchai (Dom Hetrakul, nepobaby tailandês e galã de novelas do país), que nem teve o prestígio de aparecer no site oficial do Max sobre a série! Além desses personagens, há, claro, monges, prostitutas, expositores de serpentes, lutadores de muay thai, guarda-costas e jovens mulheres se relacionando com estrangeiros mais velhos supostamente para ascenderem socialmente. Como disse, o estereótipo orientalista está em alta.
Pornchai e Belinda com o uniforme do White Lotus Tailândia: eles iniciam a série como iguais
Parecia promissor, não é mesmo? Infelizmente, Pornchai só funciona como um objeto sexual para Belinda e servir para fazer um paralelo entre a trajetória dela na primeira temporada em relação à Tanya (a impagável Jennifer Coolidge - saudades!), que havia prometido investir em um spa que seria tocado por Belinda. Pornchai também oferece sociedade para Belinda, embora os dois não tenham dinheiro para isso e estejam supostamente apaixonados. Ao ficar rica da noite para o dia, Belinda vai embora da Tailândia e qualquer chance de abrir um negócio ou ficar com Pornchai vão por água abaixo. Há paralelos entre essas trajetórias, mas não as acho completamente análogas — afinal, no início da relação, não havia a desigualdade econômica e social que existia entre Belinda e Tanya. De resto, não há nenhum outro desenvolvimento para o personagem.
O casal mais sem sal da temporada, Gaitok e Mook, também deixa a desejar. No início, parece que serão melhor desenvolvidos: ambos se dirigem para o trabalho de moto, a de Mook para de funcionar, e Gaitok lhe dá uma carona. Até agora não sei o que Mook fazia no resort, além de ter protagonizado uma cena de dança tradicional que achei mal filmada. Era para ela ser uma jovem ambiciosa e querendo uma vida melhor pra si mesma e pra família, no entanto, só pareceu ser uma chata que ajudou a corromper Gaitok, um homem sem muitas ambições e nada propenso à violência, mas que se deixa levar pelas circunstâncias e por incentivo de Sritala a atirar em Rick (personagem de Walt Goggins). Daí, ele é promovido a guarda-costas da dona do hotel e continua saindo com Mook, que estava prestes a desistir da incipiente relação ao perceber a falta de combatividade de Gaitok. O arco em si não é uma grande novidade, mas fazia sentido dentro da trama. No entanto, o desenvolvimento deixou a desejar. Os atores não tinham muita química — Lisa é uma atriz mediana — e a relação, que na primeira cena parecia que ia fluir organicamente, não me convenceu.
Mook e Gaitok: o casal mais sem sal da 3ª temporada
A mais interessante é, sem dúvida, Sritala, com uma atuação divônica de uma grande dama das artes dramáticas da Tailândia. Inclusive, há cenas que são claramente uma homenagem ao seu legado artístico, com cenas de filmes e músicas. Mesmo assim, falta um pouco mais de aprofundamento da sua interioridade e da sua relação com o marido, vivido por Scott Glenn. Não sei se é exatamente isso, mas falta alguma coisa que não faltava nas personagens italianas da segunda temporada, por exemplo, que as faziam personagens bem redondas e com vida própria, para além dos estereótipos — algo que a série consegue virar do avesso muito bem.
Sritala: a dona da porra toda
Mas preciso ser justa. Na terceira temporada, nenhum funcionário do hotel foi bem escrito. O gerente, em geral era um papel central na série, aqui perde totalmente o brilho e se torna uma mera caricatura na figura do alemão Fabian (Christian Friedel). O russo Valentin (o lituano Arnas Fedaravičius) e seus amigos são estereótipos de gostosões musculosos trambiqueiros — o arco do roubo pra mim foi tão esquecível que demorei pra me dar que eles eram os ladrões mascarados do hotel.
A terapeuta Amrita (interpretada por Shalini Peiris, do Sri Lanka) faz o papel da “mulher indiana” com ares de sabedoria que pode salvar Rick do seu destino trágico de homem que não supera seus daddy’s issues. E Pam (feita pela atriz neozelandesa Morgana O'Reilly) surge apenas como um comic relief para confiscar os celulares da família Ratfliff e informar a Tim Ratliff (e aos espectadores) que as sementes das árvores frutíferas do jardim eram venenosas e poderiam matar quem as consumisse. Ou seja, nenhum personagem que trabalha no White Lotus Tailândia chega aos pés do staff das temporadas anteriores. De toda forma, trago aqui outro questionamento: será que esses personagens não poderiam ser também tailandeses?
Mas quero terminar com a energia lá em cima, então fico por aqui com essa foto bapho de Lek na juventude, acho que do final dos anos 1970!
Lek Patravadi ou Grace Jones?
Pauladentro
Querem descobrir um pouco mais sobre as minhas outras obsessões? Aulão online sobre “Mulheres Viajantes na Literatura” na Casa Inventada. Vou contar histórias de mulheres incríveis que provavelmente vocês nunca ouviram falar.
Em breve, o retorno do curso Introdução à Ásia através da Literatura, parceria com a Livraria Aigo. Mas dessa vez vai ser ON-LINE! Fiquem ligades!
sim! e tinha muitp tempo de tela para eles desenvolverem os funcionários... será que mudou algo na equipe de roteiro? enfim.
ps: finalmente consigp dar like e share nos teus textos rs pura felicidade 😄
amei! inda não terminei, mas foi ótimo te ler ❤️