Paulatinamente #24: Lady Gaga, Prisca Agustoni, Nastassja Martin e as feras que nos habitam
É preciso matar o monstro/ até me tornar um deles
São sinuosos os caminhos que me levam sempre a escrever esta newsletter. Tenho algumas edições planejadas mentalmente, mas na hora de parir a escrita, as ideias se atropelam, os prematuros vêm antes do que está sendo gestado há meses. É preciso respeitar o fluxo do tempo de cada coisa. O corpo, dizem, é mais sábio do que pensamos. E dentro de nós habitam pulsões que não entendemos. Por vezes, o melhor a fazer é seguir o fluxo, deixar essa escrita jorrar, pois ela pede.
Esse impulso pode ser simbolizado, portanto, pela carta da Força do tarô. Um dos Arcanos Maiores que é o favorito de muitos que estudam essa prática divinatória — é também uma das mais psicanalíticas. Um anjo segura delicadamente a mandíbula ameaçadora de uma fera (um leão, talvez?), com postura tensa e retorcida. É uma carta que fala sobre aprender a controlar nossos medos interiores, as nossas sombras, os nossos impulsos destrutivos, o que há de mais “feio” em nós mesmos. Ao mesmo tempo, representa acolher todas essas facetas, porque elas fazem parte de quem nós somos. Mas acolher de uma forma gentil, sem violência. Os monstros que nos habitam devem ser abraçados. E o semblante sereno do anjo mostra que só através de gestos dóceis é que essas feras poderão ser domadas. Elas têm mais medo de nós do que nós delas.
A carta da Força representa o show que Lady Gaga apresentou em Copacabana no dia 3 de maio, o tão aguardado (para mim, pelo menos), Gagacabana. Em cinco atos, Gaga narra uma disputa entre duas facetas suas, em um arco de morte e renascimento embalado por alguns dos seus grandes sucessos e de quase todas as faixas de Mayhem, seu álbum mais recente que é o meu hiperfoco musical há meses, substituindo Cowboy Carter da Beyoncé. O início do show traz esse diálogo no telão, entre a Gaga do presente (vermelha) e a Gaga do passado (branca).
- Quem é você? Você sabe quem você é?
- Não sei quem eu sou. Quem sou eu? Eu sou eu.
- Não, você não é.
- Eu sou forte.
- Você é fraca!
- Eu sou tudo.
- Você é nada.
- Que diferença faz? O mundo me ama.
- O mundo te odeia.
- Eles me veem?
- Eles não te entendem
- Eu sou um monstro.
- Sim, você é um monstro. Nós somos monstros. E MONSTROS NUNCA MORRER.
Não fui pra Copacabana, mas vi o espetáculo em uma watch party no Cine Joia, em São Paulo, com dois amigos e um mais um monte de little monsters, como são chamados os fãs da artista. Foi um alívio ver que as feras ainda habitavam o interior da minha diva pop favorita. Pois desde o início, Gaga desafios as fronteiras do bom gosto, trazendo um mundo estranho, gótico, fantasmagórico e dominado pelo horror. Aqui, a minha parte preferida do show, só porque eu amo ver ela jogando xadrez com ela mesma em uma batalha de dança ao som de “Poker Face”. É de arrepiar.
Os monstros já faziam parte da estética de Gaga, principalmente desde Fame/The Monster, mostrando o lado monstruoso da fama, que pode te engolir se você não tiver a cabeça no lugar. Gaga soube canibalizar essa fama para continuar se reinventando. É a única estratégia de sobrevivência para continuar sob os holofotes: comer no lugar ser comida, não virar a caça do caçador da fama. Outra parte sensacional do espetáculo é o ato final, com seu renascimento ao som de “Bad Romance”, mas não vou mais encher vocês, leitores, com a minha admiração por Lady Gaga.
A questão é: no campo da narrativa do show, Lady Gaga aprendeu a domesticar esse monstro, ao assumir que ela mesma é o monstro. Assim como todos nós. Assim como a Quimera de Prisca Agustoni, outro monstro, um ser híbrido com corpo e cabeça formados por uma mistura de leão e cabra, cauda de serpente e asas de dragão. Na mitologia grega, era filha de Tífon e Equidna, conhecida por lançar fogo pela boca.
“Uma Quimera”, do artista italiano Jacopo Ligozzi (1547–1627)
Um livro de poemas que respira, é possível sentir os movimentos do abrir e fechar do diafragma desse livro estranho no melhor dos sentidos. Uma fantasmagoria que passeia por museus e seus taxidermistas (“o fabricador de quimeras”), pinturas rupestres e seres vivos de formatos informes, antropófagos que se autoantropofagizam. Essa faceta do livro vem à tona na parte “Eu também sou a fera”, tradução do título do livro Ich bin auch ein Tier, da escritora suíça Leta Semadeni. Mas antes, Agustoni já havia nos avisado: “é preciso matar o monstro/ até me tornar um deles”.
É nesse jogo de identidade/alteridade internos que eu adoro (e pesquiso) que os poemas vão sendo deglutidos, principalmente em “Monólogo do taxidermista (no museu de história natural):
É quando meu lado animal me domina:
eu misturo-me às feras,
nelas me encontro
e me perco:
suas almas saindo da noite
enquanto eu arrio nelao animal em sua noite
mais profunda
acontece, […]
toco nesse mundo
que é o das feras
Nesse momento, um urso invade meu raciocínio e me leva a Escute as feras, da antropóloga francesa Nastassja Martin, que sobreviveu ao ataque de um desses animais de grande porte, em Kamtchátka, na Rússia. O trecho do poema conversa diretamente com Martin:
“Nesse dia 25 de agosto de 2015, o acontecimento não é: um urso ataca uma antropóloga francesa em algum lugar nas montanhas de Kamtchátka. O acontecimento é: um urso e uma mulher se encontram e as fronteiras entre os mundos implodem. Não apenas os limites físicos entre um humano e um bicho que, ao se confrontarem, abrem fendas no corpo e na cabeça. É também o tempo do mito que encontra a realidade; o outrora que encontra o atual; o sonho que encontra o encarnado. A cena acontece nos dias de hoje, mas poderia muito bem ter ocorrido há mil anos. Somos apenas eu e esse urso no mundo contemporâneo, indiferente às nossas ínfimas trajetórias pessoais; mas é também o confronto arquetípico, é o homem cambaleante com o sexo ereto diante do bisão ferido no poço de Lascaux. Como na cena do poço, é a incerteza quanto ao desfecho do combate que preside o acontecimento inacreditável que, contudo, se dá. Mas ao contrário da cena do poço, a continuação não é um mistério, pois nenhum de nós morre, pois retornamos do impossível que ocorreu.”
O acontecimento é: uma transformação, o encontro na liminaridade. Martin se torna uma miêdka, vista como alguém que foi transformada ou influenciada por esse encontro, vivendo entre dois mundos, humano e selvagem.
“Para nós, os miêdka devem ser evitados e, acima de tudo, não se deve encostar nas coisas deles. Por quê? Sua tergiversação me irrita profundamente, fale por favor, não me esconda nada. Porque eles não são mais eles mesmos de fato, entende? Porque carregam parte do urso neles. Dária suspira. Para alguns, isso vai mais além. Dizem que eles ficam “perseguidos” pelo urso para o resto da vida. Perseguidos no sonho ou perseguidos de verdade?, pergunto. Os dois, diz Dária abaixando os olhos. É um pouco como se essas pessoas estivessem enfeitiçadas, você entende? Entendo.”
Uma quimera, portanto.
Mas Agustoni vai mais longe, e leva à transformação do humano ao mundo vegetal:
ser floresta
apesar da rigidez dos ossos
e verdejar o mundo
nem que seja na linguagem
Ou então:
uma pequena árvore
cresce nas zonas úmidas
e sombrias de mim,
está colada às personas
e atravessa o meridiano
do meu corpo, subindo
lentamente por dentro,
ramificando-se
na coluna vertebral
assim eu
antes
escalava o tronco;
meus braços, os ramos
do seu torso vegetal.
Uma transformação que já havia acontecido em A vegetariana, da sul-coreana e laureada com o Nobel Han Kang: “Encontraram-na sem se mexer, de pé em um barranco recôndito e distante da mata, como se ela fosse uma das árvores de tronco grosso sob a chuva”. E não é sem surpresa que encontro o meu nome nesse devir vegetal de Quimera:
nomear cada criatura é um exercício ecológico:
somos seres gregários, meu filho, destinados
a habitar a paisagem que por sua vez nos habita
e nos nomeia:
carvalho, pereira, silva, oliveira, pinheiro
— são nossa linhagem.
Quem sabe, um dia, eu também não vire uma mulher vegetal…
Pauladentro
- Para continuar essa conversa, mediarei uma mesa com Prisca Agustoni e Ana Rüsche na Flima - Festival Literário da Serra Mantiqueira, na sexta, 16/5, às 19h. No dia seguinte, 17/5, conversarei com Jamil Chade e Marie Ange Bordas, às 14h30. Haverá transmissão online.
- Seguindo no mesmo tema, conversarei por Zoom com o coletivo Escritas Regenerativas sobre o ensaio que publiquei em Depois do fim: Conversas sobre literatura e Antropoceno, na quarta, dia 21/5, às 19h.