Paulatinamente #25: Wes Anderson e o imperialismo em "O Esquema Fenício"
Pessoas normais querem direitos básicos que acompanham um Estado soberano, eu não
Confesso pra vocês, leitories (se ainda estiverem aí), que estou exausta, com ressaca de muitos trabalhos diferentes (alguns ainda não acabaram), daí fico sem espaço mental para me dedicar criativamente a estas longas missivas que, imagino, serão lidas paulatinamente. Mas, finalmente, a cabeça deu uma respirada e consegui mal-ajambrar esta edição.
Pois bem, quero falar do último filme que vi no cinema: O Esquema Fenício. Estava com altas expectativas para ver o trabalho mais recente de Wes Anderson — simplesmente amei seu Grande Hotel Budapeste, entre outros, então a barra estava alta. Confesso que achei o filme um tanto pretensioso, com uma narrativa intrincada demais, e as características que me fizeram gostar de Anderson aqui me irritaram um pouco de tão exageradas que estavam. De todo modo, esteticamente, mantém aquele mundo cativante do cineasta, e o elenco é sempre um porto seguro. Tem piscadelas demais para o público sobre o quanto Anderson e Roman Coppola, que coescreveu o roteiro com o diretor, conhecem a história do cinema. É easter egg atrás de easter egg que dá vontade de dizer: “Tá certo, bro, já percebi que você manja tudo de cinema”. Fui uma grande cinéfila em outra vida, então consegui pegar uma coisa ou outra.
Desde o nome do protagonista: Anatole Zsa-Zsa Korda, interpretado com grande panache por Benicio Del Toro. Importante notar que são todas referências a imigrantes do Leste Europeu que ajudaram a criar a era de ouro de Hollywood. Anatole pode ser referência ao diretor ucraniano Anatole Litvak, que, entre outros, dirigiu um filme sobre a princesa russa Anastasia, com Ingrid Bergman (sim, a filha do tzar que foi morta na Revolução Russa, mas que aqui mantém viva a lenda urbana de que ela teria sobrevivido ao massacre da família real). Zsa Zsa vem de Zsa Zsa Gabor, uma belíssima atriz húngara, ganhadora de concursos de beleza e que sempre foi uma starlet, nunca tendo se tornado uma graaaaande estrela. Korda pode ser de Zoltan Kordan, cineasta húngaro conhecido por seus filmes que idealizavam o colonialismo com cenários exóticos, e seu irmão Alexander Korda, outro diretor e produtor húngaro que fez vários filmes de época na Grã-Bretanha (mas confesso que pensei primeiro no fotógrafo Alberto Korda, autor da clássica imagem de Che Guevara que ficou pop).
Zsa Zsa Gabor e Liesl são o coração do filme (Universal Studios)
Achei o filme um pouco chato e longo, mas me surpreendeu pelos elementos envolvendo a representação do imperialismo, algo que não esperaria de um filme de Anderson. Pois Zsa-Zsa Korda é um grande um magnata capitalista, que explora populações e países sem remorso, e ele se vê diante de uma série de tentativas para assassiná-lo. A primeira cena do filme já mostra isso: uma tentativa de matá-lo enquanto viaja de um país para o outro — e que também traz a frase que encapsula a mentalidade do personagem, quando pede que todos os tripulantes separem seus passaportes, ainda que ele não tenha um: Pessoas normais querem direitos básicos que acompanham um Estado soberano, eu não.
Ele não respeita as fronteiras dos Estados soberanos, o mundo está ali para que ele possa explorá-lo junto com outros dos seus sócios. A nacionalidade, apesar de tudo, não significa nada para ele, ainda que viva, curiosamente, na Suíça, país conhecido por sua “neutralidade” em conflitos bélicos e por ser um dos paraísos fiscais dos super-ricos para lavagem de dinheiro. Korda vive em uma casa grande com vários filhos e, temendo morrer, resolve deixar sua herança para a filha mais velha, Liesl, que cresceu em um convento e tem o desejo de se tornar freira. Interpretada por Mia Threapleton, a primogênita da magnífica Kate Winslet, é uma das melhores personagens do filme, e faz referência, claro, à Noviça Rebelde, não só pelo noviciado e pela família grande, mas também pelo seu nome, que era a alcunha da terceira filha da família Von Trapp. Ela reluta em aceitar ser a herdeira de tamanha fortuna, acumulada por meio de trabalho escravo e fomes no mundo. Pois é a fome e o trabalho escravo são formas do acúmulo primitivo de capital.
Antes de entrar de cabeça nas representações imperialistas do filme, é importante notar que, no fundo, O Esquema Fenício é a história de amor de um pai tentando se reconectar com a filha, órfã de mãe e que foi abandonada pela figura paterna, que foi substituída pelo Deus cristão. Em termos de arco narrativo, é isso o que realmente importa. O resto é o resto. Mas tem um monte de “resto”, que é exatamente esse “esquema fenício”, envolvendo uma nação fictícia chamada Fenícia. Esse projeto busca construir infraestruturas de água, energia e ferrovias dentro de túneis dentro do país; se funcionar, Korda ganhará muito mais dinheiro. O magnata já tinha fechado negócio com vários sócios para dar cabo desse projeto, garantindo um retorno lucrativo.
Em meio a conspirações envolvendo o governo dos EUA e outros empresários, por causa de todas as suas traições e atividades ilegais pra alcançar seus objetivos, começa uma manipulação no mercado de parafusos que aumenta muito o custo do “esquema fenício”. Por causa disso, ele precisa cobrir o “buraco” deixado por esse aumento inesperado e conversa com todos os seus sócios para ver quem abriria mais o bolso para ajudá-lo.
Mapa fictício da “Fenícia” do filme (Universal Studios)
O filme nos mostra qual seria o mapa da tal “ Fenícia Independente Maior Moderna”. “Fenícia”, é bom lembrar, é o nome de um povo bem antigo que habitou a região do Levante, que inclui a costa do Líbano e Síria. Era um povo conhecido pelo seu talento na navegação, tendo se estabelecido em bases pelo Mediterrâneo, do Chipre até a Península Ibérica. A herança fenícia também foi apropriada pelos cristãos árabes do Levante nos séculos XIX e XX para se distinguir dos árabes muçulmanos da região, com o intuito de criar um país próprio com maioria cristã e defendido pela França e outros países cristãos: o Líbano. Como se vê, a cartografia dessa região não apresenta as divisões atuais do Oriente Médio.
Pelo mapa, o país parece se encontrar em uma posição bastante estratégica, com saídas para dois mares diferentes, então, em termos de circulação de mercadorias e pessoas parece ser importante. Temos ali vários nomes bíblicos: o Golfo de Methuselah (ou Matusalém, o homem mais longevo segundo a Bíblia), a Costa de Solomon (Salomão, considerado o homem mais sábio da Bíblia, supostamente autor dos belos Salmos, artífice do Templo de Salomão e que teve um caso famoso com a Rainha de Sabá), o deserto (sempre tem que ter um deserto, né?) de Melchizedek (uma figura um tanto misteriosa, Melquisedeque, rei de Jerusalém que abençoa Abraão após a vitória em uma batalha), Porto de Balthasar (um dos Reis Magos que leva presentes para Jesus na manjedoura), Monte de Jeroboam (Jeroboão I, que foi o primeiro rei de Israel após a divisão do Reino de Israel em dois novos reinos), e o Vale de Nebuchadnezzar (Nabucodonosor, rei babilônico responsável por campanhas militares pelo Levante, criador dos Jardins Suspensos, uma das sete maravilhas do mundo antigo, e responsável pelo escravização dos judeus na Babilônia).
Não estou conseguindo ler ali, mas imagino que seja Sussman Outpost, referência à Prima Hilda, personagem de Scarlett Johansson, que reina no Entreposto Privado Utópico localizado no meio da Fenícia do filme. Li em uma crítica gringa que é uma referência aos kibbutzin judaicos que foram sendo criados por grupos de judeus socialistas em meio à colonização da Palestina. Se partirmos do princípio de que o filme é uma representação do imperialismo no Oriente Médio, essa visão faz sentido.
Prima Hilda no seu Entreposto (Universal Studios)
O próprio governante da Fenícia, o rei Hussein, e seu filho, príncipe Farouk (Riz Ahmed), do “Território da Sua Majestade do 7º Rei do Ocidente Baixo da Fenícia Independente”, estão dentro desse esquema, representando as elites locais que faziam alianças com as potências ou empresários estrangeiros. Hussein é, aliás, uma referência ao primeiro monarca da dinastia hashemita da Jordânia, colocado no poder pelo Império Britânico no fim da Primeira Guerra. Já Farouk faz alusão ao penúltimo rei do Egito, que governou até 1952 com auspícios britânicos, quando foi tirado do poder por um golpe de Estado.
Farouk está dentro do esquema com Korda, e tenta convencer dois empresários estadunidenses (interpretados por Tom Hanks e Bryan Cranston) a ajudar a investir nessa ferrovia que vai cortar seu país pelo subterrâneo. Nesse momento, recorro ao livro A destruição da Palestina é a destruição do mundo, de Andreas Malm, em que ele traça a consolidação do avanço capitalista no Oriente Médio para meados do século XIX, com a utilização de navios a vapor pelo Império Britânico na guerra, mais especificamente em 1840, com a conquista da cidade de Akka (ou Acre). Com isso, o suprimento de carvão, e em seguida o petróleo, passa a ser o motor do capital — e consequentemente do imperialismo e do colonialismo. E esses combustíveis fósseis são justamente encontrados nessa região em abundância.
Korda, Farouk, Bjorn, Liesl e um fotógrafo (Universal Studios)
A relação do filme com o imperialismo é, ao meu ver, um pouco ambivalente. Não deixa de ser uma crítica ao capitalismo e ao imperialismo, ainda que o filme simpatize com a figura simpática de Korda, o capitalista cujo contato com a filha religiosa vai, por fim, humanizá-lo e redimi-lo. Talvez isso aconteça porque o tema esteja muito próximo ao seu autor. Em entrevistas, Anderson disse que Korda foi baseado no falecido sogro, um “desses homens maiores que a vida”, “inteligente, gentil, amoroso e intimidador”, segundo suas palavras, assim como na relação do sogro com sua esposa.
Aliás, o filme é dedicado ao sogro: Fouad Mikhail Malouf, shaded in life by the cedars of Lebanon, como lemos antes dos créditos finais. Ele era um engenheiro civil cristão nascido em Belém antes da criação do Estado de Israel em 1948; com o surgimento do país, a família Malouf escolheu a nacionalidade libanesa, uma vez que o dinheiro estava na época em Beirute; depois, ele passou a viver na Arábia Saudita e também em Londres, na Inglaterra, onde faleceu. Aí pode estar a ideia de que Korda não acreditava em fronteiras, uma vez que Malouf se deslocou bastante pelo mundo, além de ser também um homem muito rico.
Outra curiosidade é que ele foi casado com a escritora Hanan al-Shaykh, autora do ótimo Gente, isso é Londres (que trata justamente da vida de imigrantes na capital inglesa), e pai de Juman Malouf, escritora, ilustradora e figurinista de alguns dos filmes do marido, como O Grande Hotel Budapeste, Moonrise Kingdom e O Fantástico Sr. Raposo. Provavelmente, por esse convívio, é que Wes Anderson resolveu ambientar essa história com toques colonialistas no Oriente Médio, abrindo novos horizontes para sua obra cinematográfica.
Pauladentro
Ao longo do mês de julho, baterei ponto no Arena da Palavra, um festival literário do circuito das livrarias de rua de São Paulo e que faz parte do Cidade da Cultura, iniciativa cultural que trará várias atividades ao longo do mês em 150 espaços diferentes da capital paulista. (Sim, são todos livros da editora Tabla.)
- Bate-papo com Cassiana Der Haroutiounian para falar do seu livro Uma ilha chamada Armênia, no dia 9 de julho, quarta, na livraria Bibla, às 19h.
- Bate-papo com Marçal Aquino e Cristhiano Aguiar sobre seus livros, romances policiais e O desaparecimento do Sr. Ninguém, do argelino Ahmed Tabaioui, no dia 17 de julho, quinta, na livraria Megafauna - Copan, às 19h.
- Bate-papo com Marcos Paulo Amorim e Rafael Domingos Oliveira sobre o livro O país sem sombra, do djibutiano Abdurahman Waberi, no dia 19 de julho, sábado, na livraria Caraíba, às 18h.
Fim do mês também tem Flip - Festa Literária Internacional de Paraty e estarei lá em Paraty! Estou disponível para quem quiser me chamar pra mediar mesas, bater papo, beber e conversar de livros. Não tem coisa melhor!
Antes de ir, quero relembrar Juliana Marins. Ela morreu aos 26 anos em um vulcão na Indonésia, onde ficou quatro dias esperando por resgate. Desde fevereiro, realizava o sonho de fazer um mochilão sozinha pela Ásia, tendo se encantado com o Vietnã e se conhecido mais na Tailândia. Negligência do grupo que a acompanhava pela trilha no Monte Rinjani? Falta de estrutura do parque em manter os turistas em segurança, já que oito pessoas morreram nessa trilha nos últimos cinco anos? Demora dos grupos de resgate para acudi-la? São muitas perguntas para as quais não temos respostas no momento (nem sei se teremos).
O que não dá, como vi por aí, é culpar Juliana Marins por querer seguir o sonho de conhecer outras partes do mundo e se desafiar realizando atividades que, na teoria, deveriam ser seguras, ainda que difíceis fisicamente falando. As mulheres, mesmo quando são vítimas, ainda são vistas como "culpadas" por certos grupos. E ainda lembremos que Juliana era uma jovem mulher negra exercendo seu direito de viajar, vivendo sua vida em plena liberdade, o que deve incomodar ainda mais.
Lembrando que ficar em casa não é exatamente sinônimo de segurança para as mulheres, onde muitas dividem o espaço da residência com pessoas que podem ser suas agressoras. Se houve negligência, com certeza não foi por parte de Juliana. Minhas condolências aos familiares, aos amigos e a todos que torceram para que ela retornasse com vida dessa jornada.
Adorei a análise! Quero assistir 🧡
Como sempre, amo suas news ❤️ e espero te encontrar em Paraty!!!