Paulatinamente #3: Leonora Carrington e o "Oriente" em "A corneta"
Ser uma pessoa excêntrica é ver o mundo de uma perspectiva completamente diferente
No mês passado, eu e a Ana Rüsche, em nosso clube Leituras Extraordinárias, conversamos sobre o livro A corneta, de Leonora Carrington.
“Gêmeos”, Leonora Carrington (1997)
O livro saiu pelo selo Alfaguara e com tradução da Fabiane Secches, que também participou desse encontro. Aqui uma selfie de nós três:
Leonora Carrington (1917-2011) foi uma artista surrealista nascida na Inglaterra e que depois se radicou na Cidade do México. Quando tinha 17 anos conheceu o artista Max Ernst, com quem viveu uma paixão avassaladora. Durante a Segunda Guerra, ele foi preso por ser autor de “arte degenerada”. Carrington, então, teve um colapso mental e foi internada em um sanatório em Santander, Espanha, onde passou por maus-tratos e torturas. Sobre esse período, ela escreveu o dilacerante Lá embaixo. De todo modo, enquanto estava sendo transferida pela família para outro sanatório na África do Sul, ela conseguiu escapar e se refugiar na embaixada do México, onde fixou residência. Lá, ela fez parte do grupo de artistas locais e lutou em defesa dos direitos das mulheres.
A corneta conta, no fundo, a mesma história de Lá embaixo, mas de outra forma. De modo mais excêntrico, a melhor palavra para definir sua autora e seus personagens. Como explica, Olga Tokarczuk em seu posfácio:
“As coisas que são excêntricas estão, por definição, ‘fora do centro’ — fora das normas estabelecidas há muito tempo e de todas as coisas consideradas autoevidentes no caminho conhecido. Ser uma pessoa excêntrica é ver o mundo de uma perspectiva completamente diferente, que é tanto provinciana quanto marginal — posta de lado, aos cantos — e, ao mesmo tempo, reveladora e revolucionária.”
Olhem a sinopse: Aos 92 anos e com a audição prejudicada, Marian Leatherby ganha uma corneta auditiva de sua melhor amiga. Com auxílio do aparelho, Marian descobre que seu filho, nora e neto têm planos soturnos: não suportando mais conviver sob o mesmo teto que ela, a família se articula para mandá-la a um asilo. Mas o lugar em questão não é uma instituição comum ― os edifícios residenciais têm formato de bolo de aniversário, de cogumelos e de iglus. Lá, Marian embarca em uma jornada imprevisível, em que descobre fenômenos como a Freira Piscando, a Rainha Abelha, a entrada para um submundo e um assassinato misterioso.
Muitos livros em um, eu garanto isso! De todo modo, o que quero falar aqui é como elementos “orientais” aparecem em A corneta (essa é uma das coisas que mais gosto de fazer quando estou lendo, algo que aprendi lendo Edward Said).
Leonora Carrington aos 84 anos em seu estúdio na Cidade do México (Reuters/Alamy)
A artista foi influenciada por várias mitologias diferentes e isso se reflete no mundo de A corneta. O “Oriente” do livro é aquela grande massa geográfica longínqua de onde surgem riquezas. Uso “Oriente” e “oriental” entre aspas porque é uma região criada arbitrariamente dependendo do tempo histórico e não segue posições fixas. É algo mais cultural e geopolítico do que qualquer outra coisa. Se hoje Istambul é considerada a fronteira entre “Oriente” e “Ocidente’’, no século XVII essa fronteira era Viena, na Áustria; e seguindo o raciocínio geográfico Marrocos, Egito e outros países árabes africanos seriam “ocidentais”, e Austrália e Nova Zelândia seriam “orientais”.
De todo modo, o “Oriente” de A corneta, assim como todos os locais do romance, é mítico, mágico e “excêntrico”, ainda que inespecífico. Os elementos “orientais” aparecem, principalmente, em descrições de ambientes internos ou em objetos decorativos, como “joias de ouro indianas”; “presentes” são trazidos do “Oriente”, ou com diz um personagem (Simon) que falava sobre “Noites da Arábia, Amor e Magia”.
Uma das primeiras menções ao “Oriente” acontece de forma indireta: quando, já na Instituição, Marian Leatherby e suas companheiras jogam Escadas e Serpentes, ou Maha Lilah, seu nome original, que significa o Grande Jogo em sânscrito, ou Sana Chaupad (jogo do autoconhecimento). É um jogo de tabuleiro hindu elaborado por Rishis (sábios, santos, clarividentes) para reforçar os ensinamentos religiosos descritos em parte nas antigas escrituras védicas do Sanatana Dharma. Segundo esse texto de milhares anos, na cabeça do deus Vishnu, aquele que segura o universo, a vida não passa de um grande jogo teatral cósmico.
Não há uma data certa do surgimento do jogo, mas o mais antigo é de 2500 a.C., seu auge foi durante a dinastia muçulmana mogol (1526-1857), da Índia; durante a era vitoriana o jogo foi levado para a Europa pelos britânicos. O objetivo é chegar ao ultimo nível, mas pode não ter fim, e as escadas levam o jogador para níveis mais altos, e as serpentes para níveis mais baixos. A cada casa, abre-se uma carta e um mediador lê e interpreta o que está na carta. Eu já joguei e recomendo.
Temos também o personagem Mahjong, o chofer chinês de Carmella, a melhor amiga de Marian. Carrington não escolhe à toa os nomes de seus personagens (como o do filho da protagonista, Galahad, o cavaleiro da Távola Redonda que recupera o Santo Graal na lenda original, cujo mito em A corneta é virado do avesso). Mahjong é outro jogo, mas de origem chinesa, criado no século XIX. Eu já fui viciada nesse jogo na versão on-line individual (e devo voltar ao vício em breve). Ele consiste em um conjunto de 144 peças quadradas com caracteres e símbolos chineses. Jogado em duplas, trios ou quartetos, cada jogador recebe 13 peças, e elas são jogadas e descartadas, e é preciso usar uma 14ª peça para formar quatro conjuntos e um par de peças. Enfim, não sei as regras direito, mas o que importa é que é outro jogo.
Outro ser tirado de uma cultural “oriental”, dessa vez da judaica, é Sephira, que no livro toma a forma como um monstro de seis asas que se encontra na Torre. Sephira não é uma deusa, mas sim um canal para se conectar com a energia divina conhecida como força vital dentro da Cabala. São dez canais ou potências ou agentes, conhecidos como Sephirot (“número”, “contagem” ou “estatística” em hebraico), através dos quais Ein Soph (termo cabalístico para o Divino antes de sua automanifestação na Criação dos mundos) manifestou Sua vontade na produção do Universo. Esse seria o estágio intermediário que os humanos experienciariam como uma realidade finita. Os Sephirot integram uma série canais interligados (Tzinorot), e eles ilustram o modo na qual a energia divina é incutida em toda a Criação. Com influência do neoplatonismo, essa doutrina acredita que tudo o que existe foi produzido não por qualquer poder criativo, mas como emanações do Divino, ou seja, todas as criaturas finitas fazem parte do Divino. A sequência de emanações forma, assim, a Árvore da Vida da Cabala (me lembra um pouco o desenho do Maha Lilah).
Em termos de estrutura, A corneta lembra até As 1001 Noites com suas narrativas-moldura, ou seja, quando uma história começa dentro da história principal. Isso tem aos montes no livro, sendo que a de mais destaque é a da Freira que Pisca, ou melhor, Doña Rosalinda Alvarez della Cueva do Convento de Santa Barbara de Tartarus (que seria a Tartária, formada pelo que hoje são Sibéria, Turquestão — com exceção do Turquestão Oriental —, Grande Mongólia, Manchúria e, por vezes, o Tibete). Através de um livro escrito por um padre, descobrimos sua história, totalmente ligada a esse meio “oriental”, pois se passa na Espanha durante as Cruzadas.
Ela recebe presentes do “Oriente” de um Bispo, como “uma cabeça embalsamada de um elefante branco, todos os tipos de roupas orgiasticamente bordadas, um enorme caixote de sândalo recheado de manjares turcos e, claro, os preciosos frascos de Musc de Madaleine, o unguento que dizem ter sido escavado em Nínive e encontrado ao lado da múmia da própria Maria Madalena. Esse poderoso afrodisíaco foi sem dúvida o responsável pelos supostos milagres atribuídos à Abadessa depois de sua morte”. Vemos aqui como a fragrância que desperta a potência sexual surge do “Oriente”, algo muito presente no imaginário europeu.
A Abadessa Rosalinda, então, se disfarça de nobre barbudo para encontrar o Príncipe Theutus Zosimos, que pretendia invadir o convento. Encontra-o a caminho do convento em uma carruagem, que é guardada por dois cavaleiros apenas, “tendo deixado um pequeno exército de mouros em Granada à espera de ordens”. Ou seja, ainda existia a presença moura na Espanha. Nesse encontro, a Abadessa disfarçada de homem “despertou o interesse pervertido do jovem. Tendo certos costumes orientais desnaturados já deformados sua masculinidade, o Príncipe fez investidas impróprias a Doña Rosalinda”. Era comum, na Europa, acreditar-se que a localização geográfica e o clima quente fariam com que os “orientais” tivessem inclinações homossexuais e sodomitas.
Outra personagem que tem origem moura é Irmã Teresa Gastélum de Xavier, que substitui a Rosalinda como Abadessa, pois tinha “uma compleição escura e modos taciturnos e secretos”. A dissimulação era também outra característica destacada em narrativas orientalistas.
Pra terminar, vou dar um belo spoiler: quando Marian desce até as profundezas da Torre queimada, ela encontra uma mulher mexendo um caldeirão de ferro. Quando ela vê o rosto da mulher, seu coração pula: “A mulher que estava diante de mim era eu mesma”. Este é o fim de uma das histórias que me bota em lágrimas copiosas: a parábola sufi A linguagem dos pássaros, do persa Farid-ud-Din Attar, em que os pássaros precisam passar por sete vales perigosos para chegar até o Simurgh, Rei dos Pássaros. Apenas 30 pássaros sobrevivem a essa travessia e, quando chegam no final, encontram a si mesmos, pois Simurgh em persa significa “30 pássaros”. É uma forma belíssima de dizer que Deus encontra-se dentro de nós mesmos e essa é a maior aventura que se pode ter: o encontro consigo mesmo e com o divino dentro de nós.
Outro aspecto que não necessariamente tem a ver com o “Oriente”, mas sobre o qual eu quero mencionar é a influência do tarô no livro. O final, por exemplo, é claramente a carta da Torre, e encontramos também a presença dos Arcanos O Sol, A Lua, O Julgamento, A Sacerdotisa, entre outros. Inclusive, Carrington criou um tarô próprio e foi uma das mestras do Alejandro Jadorowsky, o cineasta chileno que também é um dos responsáveis pela visão que temos hoje do Tarô de Marselha, o mais clássico de todos. Só dizer que o tarô dela é belíssimo!
A Torre, carta de tarô feita por Leonora Carrington
Paulestras
Tive a alegria de participar do Roda Viva com a giganta Ana Maria Gonçalves, autora de Um defeito de cor! Estive na bancada junto a Vera Magalhães, Adriana Ferreira Silva, Rosane Borges, Rinaldo Gama e Pedro Niemeyer Cezarino.
(A Ana Cartaxo, da editora Tabla, tirou essa foto minha da TV: parece que estou calma e plena, mas não estou)
Eu já tinha conversado com Ana Maria Gonçalves ao lado de Cidinha da Silva no podcast 451 MHz. A conversa tá aqui.
-Também participei do lançamento do livro Um Grande Dia para as Escritoras no Rio de Janeiro, que aconteceu na Biblioteca Nacional. Mediei a conversa com as escritoras Aline Chagas, Eliana Alves Cruz, Julia Wähman e Renata Corrêa. A conversa está no YouTube também!
Teve também lançamento de Bagdá Noir, com organização de Samuel Shimon, na livraria Martins Fontes! Conversei com o escritor Oscar Nestárez, a tradutora Jemima Alves e a escritora Paula Febbe. Uma fotinho do dia!
Pauladentro
Quinta, dia 3 de agosto, farei lançamento do meu livro Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt em Belém (PA) na Livraria Travessia! Ainda não sei o horário, mas estou feliz de lançar meu livro na região Norte!
Terça, dia 8 de agosto, estarei na Livraria Mandarina conversando com Joca Reiners Terron sobre seu novo romance Onde pastam os minotauros. Apareçam lá!
Quinta, dia 31 de agosto, às 19h, eu e a parça Ana Rüsche estaremos na Livraria da Tarde, em São Paulo, participando do Leituras Extraordinárias, nosso clube de livros estranhos. O livro da vez é Noite e dia desconhecidos, de Bae Su-ah, e teremos a participação mais do que especial de Luara França, editora e grande entusiasta a literatura sul-coreana! Venham, estou obcecada pelo livro!