Paulatinamente #4: Patti Smith canta Medeia, a da mitologia grega
Do you remember me? I come from the Black Sea with the darkest heart and a banning fleece. So do you remember me?
Este singelo e mal gravado vídeo foi um dos poucos registros que fiz de “Correspondences”, performance artística que reuniu mais uma vez “the one and only” Patti Smith e o Soundwalk Collective, um coletivo internacional de arte sonora experimental fundado em 2001 por Stephan Crasneanscki, a quem se juntou Simone Merli em 2008. A performance aconteceu no Teatro Colón, em Bogotá, Colômbia, bem nas minhas férias. (Agradeço a querida Clarissa Galvão do @clubetraca por me avisar dessa bela coincidência).
Era isso: a Patti ficava lendo e performando textos que ela escreveu incorporando desde as crianças mortas em Chernobyl até Tarkovski conversando com a Natureza, enquanto cenas eram projetadas no fundo do palco ao som dos artistas do coletivo. Depois de duas apresentações foi inaugurada uma exposição sobre esse trabalho, também chamada de “Correspondences”.
Bom, o vídeo lá em cima é parte da performance “Medea, a letter do Jason”.
Do you remember me? I come from the Black Sea with the darkest heart and a banning [?] fleece. So do you remember me? I was a country girl and I had the mind of a young god. […] I almost remember myself high spirited, fast running with the mind of a young god.
É assim que começa essa apresentação: “Você lembra de mim? Eu venho do Mar Negro com um coração sombrio e um velocino banido. Eu era uma garota do campo com a mente de um jovem deus. […] Quase lembro de mim destemida, correndo rápido com a mente de um jovem deus”.
Qual não foi minha surpresa ao perceber que Patti falava de Medeia, não exatamente uma camponesa, mas a princesa da Cólquida e sacerdotisa da deusa Hécate (a das encruzilhadas, a das profundezas) que foi peça-chave para que Jasão, que liderou os míticos Argonautas, que reuniu praticamente todos os heróis da mitologia grega no navio Argos, conseguisse levar o Velocino de Ouro à Grécia; de quebra, Jasão achava que isso o levaria a ascender ao trono da cidade de Iolco, governada pelo seu tio Pélias.
Manuscrito da carta de Medeia para Jasão by Patti Smith (meus dons de paleógrafa estão enferrujados, então quem conseguir decifrar isso aí me escreve, por favor)
Eu sou obcecada pela Medeia desde que eu tinha uns 11, 12 anos. É, ao meu ver, a personagem mais mal interpretada da mitologia grega. Sempre senti uma ligação muito forte com ela (o que isso significa deixo pra imaginação de vocês e pra minha terapia). Li muito sobre o mito, suas várias versões e tenho até na minha cabeça uma série audiovisual sobre ela, com todos os atos prontos. Por isso, eu fiquei mais do que enlevada ao testemunhar o encontro entre essas duas figuras (Medeia e Patti Smith) que me acompanham há décadas.
Para quem não conhece a história, nesse furdunço todo da chegada do navio Argos, Medeia se apaixona por Jasão (culpa de Eros, meus amigos, sempre ele), trai seu país e sua família para conseguir o Velocino de Ouro para Jasão. (Parênteses: o Velocino de Ouro é a pele de uma ovelha alada coberta de ouro cuja origem e trajetória é tão sangrenta quanto a parte final da sua epopeia, mas não cabe aqui falar dela). Medeia, que era neta de Hélios, o deus-Sol, chegou a assassinar e esquartejar seu irmão bebê e jogar seus pedaços no Mar Negro para impedir que Jasão e os Argonautas fossem perseguidos pelo exército de seu pai. Quando ela faz isso, chorando a cada passo do caminho, sabe que está perdida. Em outras versões do mito, o irmão dela já está crescido e se oferece em sacrifício. No caminho, o navio para na ilha da feiticeira Circe (sim, aquela da Odisseia que se apaixona por Odisseu e transforma homens em porcos), tia de Medeia, e que celebra o casamento entre a colquiana e Jasão.
Retornando a Iolco, Pélias, obviamente, não cede o trono para Jasão, que pede ajuda pra, claro, Medeia, a mulher ultratalentosa que faz o trabalho sujo para seu amor. Ela, então, faz com que as filhas de Pélias acreditem que se matarem e cozinharem o pai em um caldeirão com água quente ele sairá mais jovem. Elas realizam tal ato, mas Pélias, obviamente, continua mortinho, só fica mais bem passado [faço piadas pra manter a leveza diante de todas essas atrocidades]. Por participar desse crime, Jasão não ascende ao trono e é banido para Corinto junto com Medeia.
“Jasão e Medeia”, John William Waterhouse (1907)
Em Corinto (no que hoje é a Tunísia, no norte da África) é que vai se desenrolar o período mais conhecido da vida de Medeia. O casal se estabelece na cidade, tem dois filhos (ou três, dependendo da versão) e vive a vida. Anos depois, o rei de Corinto, Creonte, oferece sua filha Creusa (ou Glauce) em casamento, mas, para isso, Jasão precisa repudiar Medeia, que em seguida será banida da cidade; os filhos poderiam ser criados no palácio. Quando ele abandona Medeia (que, com certeza, era escorpiana), ela passa a arquitetar sua vingança. Envia um vestido envenenado para a princesa Creusa, que o veste e morre, assim como seu pai, o rei. O clímax acontece quando Medeia mata seus dois filhos para se vingar de Jasão (em outras versões do mito, Medeia e os filhos são mortos apedrejados por uma população em choque com a morte do rei e de sua filha). É quando muitas narrativas mostram o quanto enlouquecida estava Medeia, enquanto Jasão fica absolutamente sem nada, apenas com seu navio Argos (que depois será a causa da sua morte, pois a embarcação passa por cima dele anos depois, que morre prensado por ela). Em um belo deus ex-machina, Medeia foge de Corinto na carruagem de ouro do seu avô, o deus-sol, carregando sempre com ela o Velocino de Ouro.
Essa é a história que ficou eternizada na tragédia de Eurípedes (que, sim, eu vejo como um feminista avant-garde), e é o papel que muitas atrizes sonham em fazer. Muitas fizeram, da mítica Sarah Bernhardt a Maria Callas. Aqui, um dos meus cartazes preferidos.
Cartaz da peça Medeia feita pelo mágico Mucha
No Brasil, esse mito foi apropriado por Chico Buarque e Paulo Fontes para criar o musical Gota d’água, cuja canção tem vida própria mesmo fora da peça. Aqui, uma versão dessa música na voz da grande Bibi Ferreira.
No entanto, a história de Medeia não para aí. Ela consegue refúgio em Atenas, governada então por Egeu, que se casa com ela. Seus opositores afirmavam que ela tinha enfeitiçado Egeu e quem governava realmente a cidade era ela. Daí, chega Teseu (sim, o do labirinto do Minotauro), que diz ser filho de Egeu e verdadeiro herdeiro do trono. Uma disputa começa entre ele e Medeia, na qual ela sai derrotada (Sim, desgosto imenso de Teseu).
É a hora de retornar para casa, a Cólquida. Lá, ela ajuda o tio paterno a recuperar o trono de um usurpador, devolve o Velocino de Ouro à cidade e fica lá até a sua morte. Em outras versões, ela retorna com Medo (filho que teve na Grécia com Egeu), que depois se torna herdeiro do trono de Cólquida e que teria originado o povo medo, uma das populações que constituíram o Império Persa. Essa versão é a que eu mais gosto, porque Medeia se torna mãe novamente e pode viver de alguma forma a maternidade que ela mesma interrompeu para se vingar do homem que a abandonou; e, claro, ela volta pra casa. Em outras versões ainda, no pós-vida, Medeia vai viver nos Campos Elíseos (uma espécie de Paraíso grego que só foi criado tardiamente nas culturas gregas, que afirmavam que a morte era um sofrimento só no Hades) como esposa de Aquiles (!), o herói do calcanhar vulnerável da Ilíada.
Pra quem se interessar e souber um pouco de inglês, recomendo assistir ao episódio sobre Jasão e os Argonautas de um série documental com o historiador britânico Michael Wood que busca evidências históricas de mitos viajando pelo mundo. Ele faz algumas observações interessantes, como o fato de Jasão não ser um herói tradicional dos mitos gregos, pois é um homem sensível que deixa claro suas vulnerabilidades e fraquezas (como vemos em Argonáuticas, de Apolônio de Rodes, epopeia escrita no século III a.C.). Além do que, diz Michael Wood, a partir que Argos aporta em Cólquida, a história de Jasão vai ser dominada por uma personagem forte que toma conta de toda a narrativa e que rouba a cena: Medeia. Porque é isso, quem faz toda essa narrativa girar são as ações dela para ajudá-lo.
Um elemento chave pra entendermos a história de Medeia é que ela nunca foi grega, ela era uma “bárbara” na visão dos gregos, uma estrangeira, uma desterrada, algo visto como muito perigoso nas cidades-estados gregas. Geograficamente, a Cólquida hoje se encontra na região oeste da Geórgia (o país da região do Cáucaso, não o estado estadunidense, que invariavelmente está na esfera de influência da Rússia). A Geórgia é o local de origem do Velocino de Ouro. Parece que a Geórgia vê o Velocino como o presente oferecido por esse país à Europa, criando uma ligação mítica dessa região com a civilização ocidental-europeia; e os caminhos percorridos por Medeia nos seus deslocamentos forçados seriam o símbolo da migração dos colquianos para as cidades gregas, auxiliando na formação dessa civilização.
O Soundwalk Collective tentou refazer esses deslocamentos no projeto sonoro-visual “Medea: Made in the Black Sea”, em que passaram por Turquia, Ucrânia, Geórgia, entre outros lugares. Dá pra ver aqui embaixo:
Outra curiosidade é a busca da origem do Velocino de Ouro como artefato histórico, que ganhou algumas versões. A minha preferida é a da técnica de garimpo de ouro em rios, em que se usava as peles de carneiro como uma espécie de peneira nas correntezas dos rios. Com isso, o ouro se prendia na pele e, posteriormente, era pendurado em galhos de árvore pra secar, a fim de possibilitar a coleta do minério precioso. É uma técnica de garimpo usada ainda hoje, inclusive no Brasil, mas com diferentes tipos de tecidos no lugar da pele de carneiros.
E quando, em algum momento da vida, eu viajar para a Geórgia , gostaria de ver essas duas estátuas que representam Medeia, essa personagem “maldita”. São de gosto duvidoso? Sim, com certeza, mas são homenagens da terra natal dessa personagem que me tira do prumo e que não canso de admirar pela sua inteligência e astúcia, pela temeridade com que se deixou levar por suas paixões, pelo medo que causa a todos em volta pelos seus talentos e por sua resiliência inabalável. O preço que ela pagou foi muito caro, mas ela sobreviveu, e não posso deixar de admirar os sobreviventes, essas figuras trágicas que não são mitos, mas muito reais.
Medeia e o Velocino de Ouro na praça Europa na cidade portuária de Batumi
Medeia com seus dois filhos por Merab Berdzenishvili Isidorovich, instalada nos anos 1980, na cidade de Pitsunda, na Abkhazia
Paulestras
Em 3 de agosto, tive a alegria de realizar o lançamento de Direito à vagabundagem em Belém do Pará na livraria Travessia! Qual será a próxima cidade em que a vagabundagem aportará?
No dia 8 de agosto participei de uma conversa com Joca Reiners Terron sobre Onde pastam os minotauros, que ele acabou de lançar pela editora Todavia, na livraria Mandarina, em São Paulo. Dá pra ver a conversa aqui.
Pauladentro
Quinta, dia 31 de agosto, às 19h, eu e a parça Ana Rüsche estaremos na Livraria da Tarde, em São Paulo, participando do Leituras Extraordinárias, nosso clube de livros estranhos. O livro da vez é Noite e dia desconhecidos, de Bae Su-ah, e teremos a participação mais do que especial de Luara França, editora e grande entusiasta a literatura sul-coreana! Venham, estou obcecada pelo livro!