Paulatinamente #5: As solitárias de Carolina, Clarice, Eliana e Giovana
E fatalmente, assim como ela era, assim deveria ter me visto?
Tinha imaginado escrever sobre outro tema pra newsletter de setembro, mas fui um tanto atropelada pela minha leitura de A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Eu nunca tinha lido (sim, todes nós temos essas lacunas em nossa formação), e daí, como deve acontecer com muita gente, fiquei perturbada. Só que não do modo como eu imaginava. Já sabia que haveria um encontro com a barata e que isso acarretaria uma transformação interna da protagonista-narradora. No entanto, o que me pegou de surpresa foi que o encontro com a barata se dá no quarto de empregada, no momento em que G.H. está indo limpar o cômodo, depois da demissão de Janair, mulher negra que trabalhava na casa da protagonista.
Janair, segundo G. H., sentia por ela a “pior espécie de ódio”, o ódio isento, o ódio indiferente, a falta de misericórdia, nem a menos ódio.
“Foi quando inesperadamente consegui rememorar seu rosto, mas é claro, como pudera esquecer? revi o rosto preto e quieto, revi a pele inteiramente opaca que mais parecia um de seus modos de se calar, as sobrancelhas extremamente bem desenhadas, revi os traços finos e delicados que mal eram divisados no negror apagado da pele.
Os traços — descobri sem prazer — eram traços de rainha. E também a postura: o corpo erecto, delgado, duro, liso, quase sem carne, ausência de seios e de ancas. […] arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era uma invisível […] Janair tinha quase que apenas a forma exterior, os traços que ficavam dentro de sua forma eram tão apurados que mal existiam: ela era achatada como um baixo-relevo preso a uma tábua.
E fatalmente, assim como ela era, assim deveria ter me visto?”
Daí fui atrás na internet de artigos que pudessem me ajudar a pensar sobre esse aspecto de G.H. e encontrei um bem interessante: O talking back da “negra africana”: o ser desencarnado e silenciado da empregada doméstica Janair em A paixão segundo G.H., de Francisco Quinteiro Pires, que pode ser lido aqui.
As escritoras Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus
Entre suas reflexões, está o modo como a produção literária de Jesus influenciou na escrita de Lispector.
“Ao criar a personagem de uma empregada doméstica negra em ‘A paixão segundo G.H.’, Lispector sabia da existência de Jesus, um fato que […] reforçaria o argumento de que a obra de Lispector não merece a ‘suposta alienação que lhe é comumente atribuída’ (2018: 174). Mais do que centralizar a discussão tão-somente na condição de oprimida da empregada doméstica negra, este artigo propõe a hipótese de que é possível escutar modos de expressão de Janair por meio de sua capacidade de gerar afetos em G.H. com um mural a carvão.”
E, claro, nesse contexto, não dá para não pensar em Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, que se recusou a trabalhar como empregada doméstica, preferindo ser catadora a servir famílias brancas burguesas — pelo menos, assim, seria mais dona da própria vida e não deveria se submeter a ninguém. O quarto de despejo é um cômodo da casa (que também pode virar moradia precária) onde são guardadas as coisas que se quer jogar fora ou se quer deixar fora da nossa vista. Um local onde a sociedade brasileira gostaria de manter historicamente mulheres como Carolina. Ou uma “solitária”, na interpretação de Eliana Alves Cruz, fazendo uma ligação direta com prisas senzalas e o encarceramento.
Coloco aqui uma das fotos daquele ensaio fotográfico que adoro de Carolina, feito por Zelia Gattai, com as roupas de Carnaval feitas pela própria autora de Casa de alvenaria. Fiquei encantada por essas imagens quando as vi pela primeira vez na exposição sobre a escritora no IMS-SP.
Carolina Maria de Jesus
O “quarto de despejo” também aparece como um dos capítulos de Solitária, de Eliana Alves Cruz. Ouvi em audiolivro, na bela interpretação da autora carioca. Todos os capítulos têm nomes de cômodos de uma casa ou lugares de um edifício. O romance é dividido em três partes; a primeira narrada por Mabel, filha de Eunice, que leva a filha para morar com ela no quarto de empregada do apartamento da família para a qual trabalha num edifício de luxo no Rio. A segunda parte é narrada pela própria Eunice, e a terceira são os próprios cômodos que narram a tragédia que recai sobre algumas das vidas negras dos empregados do prédio (todas inspiradas em acontecimentos reais tristes e que dão muita raiva).
“Todo quarto de empregada é próximo à grande lixeira da casa, porque está sempre no fundo do profundo do imóvel. Nós, os ‘quartinhos’, estamos sempre perto dos odores da vida das pessoas que não nos habitam. Perfume francês, patê de fígado de pato, vinho caro, trufas, papel higiênico, absorventes, suor. Quase tudo era deles.”
Apesar de as propagandas do mercado imobiliário não mencionarem mais o “quarto de empregada”, ele ainda existe, mas é divulgado como “quarto reversível”, fato este que é destacado pelo próprio Solitária.
Detalhe de anúncio imobiliário publicado nos anos 1960, oferecendo “quarto de empregada”com banheiro e entrada de serviço “independentes” (Hypeness)
Sobre os cômodos da casa, lembrei de Fernanda, uma das narradoras protagonistas de Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso, cria para a babá Maju, que vai tentar raptar Cora, a filha da patroa, um quarto “num lugar claro, descolado e dotado de amenidades como tevê e frigobar, um quarto que poderia muito bem ser a suíte de um hotel japonês. E por isso, e para me sentir menos escravocrata, batizei o cômodo de Suíte Tóquio”.
“Ela tinha deixado a Cora no cantinho da vida, e lá no cantinho da vida tinha eu”, afirma Maju. A seu ver, Fernanda tinha relegado Cora ao quarto de despejo da sua vida, ao negligenciar de tal modo a criação da filha pequena, a qual a babá pretende cuidar como se ela mesma tivesse dado à luz.
Daí eu também sempre lembro da martinicana Françoise Ega, que conheceu Carolina em uma matéria da revista Paris Match nos anos 1960. Como a brasileira, com quem se identificou na hora, Ega também queria ser escritora e escreveu cartas endereçadas a Carolina, que foram publicadas no belo Cartas a uma negra, traduzido por Vinícius Carneiro. Mais uma espécie de diário no qual trava um diálogo com autora de Quarto de despejo, o livro traz relatos pessoais da sua experiência como diarista em casas de famílias brancas francesas, o esforço para manter uma rotina de escrita (inclusive, tendo de comprar lápis e folhas em branco) e contextualiza o tráfico e a escravidão por dívidas de mulheres caribenhas que iam trabalhar em casas de família. “O mais penoso para uma faxineira, Carolina, é o cheiro da vida dos outros”, escreve ela.
A escritora Françoise Ega
Quem quiser saber mais sobre esse belo livro, pode ouvir a partir do minuto 19:20 o oitavo episódio do podcast A Terceira Margem do Reno, do qual fiz a coordenação geral. Nesse trecho específico, temos as participações especiais de Preta-Rara, cantora, compositora, professora e autora de Eu, empregada doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada, e da editora e jornalista Yasmin Santos. Dá pra ouvir aqui embaixo:
Essa conversa toda me fez lembrar de um filme chamado Le noire de... (ou The Black Girl), do cineasta senegalês Ousmane Sembene. Comprei um DVD pirata desse filme quando estava viajando pela China, em 2007. Lá tinha lojas incríveis de DVDs piratas e compreimuita coisa boa que eu desconhecia e que era de difícil acesso no Brasil na época. É um filme que foi doloroso de assistir, pois conta a história de uma imigrante senegalesa que se torna empregada doméstica de uma família burguesa da França — históriaessa que nós, brasileiros, conhecemos tão bem (mas é sempre bom descobrir que essas estruturuas da colonialidade não estão só apenas em nosso território, mas em terras que se consideram mais “civilizadas”). O final do filme é desolador. Quem quiser, pode vê-lo aqui embaixo com legendas em português.
Em tudo que eu referenciei aqui, as patroas brancas e ricas, em geral, dependem muito das mulheres que trabalham em suas casas ou cuidam de suas crianças. De algum modo infantilizadas e dependentes no que tange ao trabalho reprodutivo, percebem-se diferentes graus de exploração e as relações de poder, o racismo e o preconceito de classe são escancaradas ao virarmos o ponto de vista para “os fundos” das casas.
Paulestras
Em 31 de agosto, no clube Leituras Extraordinárias, eu e a editora Luara França conversamos sobre o estranhíssimo Noite e dia desconhecidos, da sul-coreana Bae So-ah, traduzido por Hyo Jeong Sung e lançado pela DBA. Foi uma ótima conversa, que deu várias possíveis caminhos para pensar nesse livro!
Luara França e eu tentando desvendar esse livro estranho
No dia 5 de setembro, participei do debate “A mulher no mercado editorial global dentro do contexto do PublishHer” no Rio International Publishers Summit, dentro da Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Descobri lá que sou considerada uma liderança feminina dentro do setor! :O
Talita Facchini (PublishNews), eu, Roberta Machado (Grupo Editorial Record), Karine Pansa (IPA), Bodour Al Qasimi (PublishHer), Ana Lima (Rocco), Flavia Bravin (Saber Educação), Camila Perlingeiro (MapaLab) e Lizandra Magon (editora Jandaíra),
No 12 de setembro, estive na Livraria Megafauna para conversar com a quadrinista francesa Chantal Montelier, para falar sobre o lançamento de Bruxas: minhas irmãs, com tradução de Maria Clara Carneiro e que saiu pela editora Veneta. Adoro tanto esse que fiz no meu Instagram uma lista com alguns livros que li que tratam do tema.
Eu e a grande Chantal Montellier
Dentro dessa temática, recebi o convite da Roberta Martinelli para participar do Clube do Livro da Rádio Eldorado para falar de Eu, Tituba, de Maryse Condé, com tradução de Natalia Borges Polesso. O primeiro bloco traz a Maria Carolina Casati, com quem tive grande sintonia, apesar da conversa em separado. Dá pra ouvir aqui embaixo:
Pauladentro (a agenda tá cheia!)
Terça, dia 3 de outubro, às 19h, vou estar na Livraria Megafauna com na companhia de Marina Candido e Carolina Ferreira para falarmos de Pequeno país, de Gaël Faye, que sai pela editora Carambaia, com tradução de Marília Garcia. Eu me interesso bastante sobre o genocídio de Ruanda. Também escrevi uma resenha do livro Murambi: o livro das ossadas, de Boubacar Boris Diop, para a Quatro Cinco Um.
Sexta, dia 6 de outubro, às 19h, vou bater um papo virtual com a minha querida Gaía Passarelli para falarmos do seu divertido livro Mas você vai sozinha?, no The Book Club. Mais informações em breve em nossas redes sociais! A gente já conversou sobre nossos livros no podcast 451 MHz!
Quarta, dia 11 de outubro, às 19h, eu e a parça Ana Rüsche estaremos na Livraria da Tarde, em São Paulo, participando do Leituras Extraordinárias, nosso clube de livros estranhos. O livro da vez é O homem de areia, de E.T.A. Hoffmann, e teremos a participação mais do que especial de George Amaral, psicanalista e doutorando em teoria literária! Vamos falar desse clássico, com e além de Freud!
Quarta, dia 25 de outubro, às 19h, terei o prazer de participar do Circulo de Leituras do Circolo Italiano, organizado pela Maria Carolina Casati (@encruzilinhas), lendo As pequenas virtudes, da Natalia Ginzburg, e A trilha dos ninhos de aranha, de Italo Calvino.
Segunda, dia 27 de outubro, às 18h converso com o escritor Marcelo Maluf na Livraria Mandarina sobre seus livros Os últimos dias de Elias Ghandour e Imensidão dos carneiros.