Paulatinamente #6: Colette, o Egito e o beijo que abalou Paris
aqueles admiráveis olhos de desconfiança... e também de servidão
Passei os últimos dois meses pensando em Sidonie-Gabrielle Colette, vulgo Colette (1873-1954), escritora francesa das mais importantes da literatura francesa do século passado e uma das personalidades mais intrigantes e apaixonantes da virada do XIX para o XX.
Ela não anda muito em alta aqui no Brasil – como a Marguerite Duras, por exemplo –, que tem redescoberto a vida e a obra de várias mulheres importantes que foram apagadas da história. Não sei se podemos dizer o mesmo de Colette, pois foi uma das autoras mais polêmicas e celebradas na França. No entanto, uma certa falta de burburinho em torno dela não deixa de ser curioso.
Eu já a conhecia, por causa do cinema (descobri muita coisa por causa dessa paixão adolescente). Vi o musical Gigi (1958), filme com Leslie Caron, dirigido por Vincent Minnelli (dá pra alugar no Prime Video), baseado em uma novela de Colette (de 1944) sobre uma garota parisiense que treina para se tornar cortesã e sua relação com o rico Gaston, que se apaixona por ela.
Uma curiosidade: a novela primeiro se tornou uma peça teatral em 1952, com uma ainda desconhecida Audrey Hepburn no papel principal, escolhida pela própria Colette, que a viu dançando de modo desengonçado no lobby de um hotel.
Audrey Hepburn como Gigi, em foto de Milton Greene
Reencontrei Colette ao ver o filme homônimo com Keira Knightley, que estava até um mês atrás disponível no Prime. O foco do longa de 2018, dirigido por Wash Westmoreland, é a relação de Colette, uma garota que vem da Borgonha, com seu marido Willy (Dominic West), um escritor e editor mais velho e mulherengo já conhecido nos círculos sociais de Paris.
Os dois se casam e passam a ter um casamento não convencional, no qual ambos se relacionam com outras mulheres. Mas a questão principal é que Willy se apropriou de uma série literária escrita por Colette: Claudine, que contava as aventuras da protagonista da escola até ir para Paris e se apaixonar; a série fez tremendo sucesso na França. Ele chegou a trancafiar Colette por dezesseis horas em um quarto para que ela escrevesse as histórias da personagem para ele!
O casal se divorciou em 1910, e ela foi trabalhar no teatro para sobreviver (período este abordado em A vagabunda, romance um tanto autobiográfico) e lutou de modo bem-sucedido na Justiça para obter os direitos autorais da série.
Achei o filme meio “meh”, mas gostei do seu ápice: a apresentação de Rêve d'Égypte [Sonho do Egito], uma pantomima que Colette performou ao lado de Mathilde de Morny, a “Missy” (apelido carinhoso dado por Colette à sua amante), ou então Max, que era como queria ser chamado.
Na peça, escrita por Max (sob o pseudônimo de Yssim, Missy ao contrário) e com música de Édouard Mathé, um egiptólogo está numa biblioteca lendo livros e passa a ter visões de um sarcófago onde está uma múmia. Esta ganha vida e dança cada vez mais perto do estudioso, que vai retirando as bandagens brancas do seu corpo. Após esse strip-tease, uma bela mulher é revelada; em seguida, acontece um beijo entre os dois, que faz a múmia ganhar vida. Ao final, o homem acorda e conclui que foi tudo um sonho.
Essa pantomima de 15 minutos causou escândalo porque o beijo foi dado entre duas mulheres: Colette – a múmia desenrolada – e Max/Missy – vestido com o terno do egiptólogo. Max, que tinha então 43 anos e era sobrinho de Napoleão III, já usava cabelo curtos e “roupas masculinas” fazia bastante tempo. Detalhe: mulheres eram proibidas pela lei de usar calças desde os 1800 até 2013 (!!!).
Colette em Rêve d'Égypte no Moulin Rouge, em janeiro de 1907 [Rue des Archives]
Foi, então, um beijo entre duas mulheres, o que causou o maior quiproquó no famoso Moulin Rouge, em Paris, na noite de quinta-feira do dia 3 de janeiro de 1907. O auditório estava cheio. No programa, havia três apresentações, sendo Rêve d’Egypte seria a segunda encenação da noite. Houve muita publicidade divulgando a estreia de Max e Colette, que já haviam trabalhado juntas no ano anterior, na pantomima La Romanichelle, em que a escritora fazia o papel de uma “cigana”.
Colette e Max/Missy em “Rêve d’Egypte”
Quando a cortina levantou, vários integrantes da plateia ficaram escandalizados ao ver uma mulher vestida de terno. Desde o início da performance, parte do público bradou insultos e jogou laranjas, maçãs e vegetais no palco. Colette, ao se revelar, foi recebida com nabos. As duas continuaram a pantomima em meio ao som de uma canção revolucionária entoada por parte da plateia, que tinha por intuito fazer com que elas se retirassem do palco. Bengalas e pés batiam no chão e homens assobiavam para distraí-las.
À medida que Max retirava as bandagens de Colette, as coisas jogadas sobre elas ficavam cada vez maiores: almofadas e até bancos pequenos. O clímax aconteceu quando os lábios das duas se tocaram, causando uma fúria na audiência. Pessoas se levantaram, golpes foram trocados, Willy (que estava assistindo em um balcão) foi atacado, tendo sido salvo pela chegada da polícia, que ocupou o teatro e impediu um estrago maior.
A performance de Colette e Max só aconteceu essa única vez; o papel do egiptólogo passou a ser interpretado por George Wague, o professor de mímica da autora de Claudine. O delegado de polícia, Louis Lépine, deixou que a pantomima continuasse a ser exibida sob um outro título, Songe d’Orient [Sonho de Oriente].
No entanto, o público continuava a gritar e a assobiar durante a apresentação, cantando canções revolucionárias. Então, foi definitivamente banida de Paris. Dois meses depois, Colette e George repetiram a performance durante três noites em Nice sem nenhuma ocorrência.
Agora, vou me utilizar do que Edward Said me ensinou em Cultura e imperialismo: ver o Império e o colonialismo nesses contextos e nas representações. É o que acontece, por exemplo, na vida de Colette, cuja família por parte de mãe esteve enraizada na Martinica, colônia francesa.
Seu ancestral, Pierre Landois, da região de Champagne, foi para lá nos anos 1660 para trabalhar em regime de servidão no cultivo de cana-de-açúcar. Em 1680, ele já tinha se estabelecido como dono de uma plantation no Caribe, possuindo 26 escravizados — 9 homens, 11 mulheres e 6 crianças.
Outra ligação com o Império é a contratação da atriz franco-argelina Émilie Zouze Bouchau, conhecida como “Polaire”, para interpretar Claudine na peça Claudine à Paris, na capital francesa, em 1902.
No filme Colette, Polaire (interpretada por Aisha Hart) é apresentada por Willy como “o orgulho de Argel”, sendo uma menção à ocupação francesa na Argélia. Nascida na capital argelina, Polaire foi para Paris em 1874, seguindo seu irmão, que também era ator. Esse casting foi uma das razões pelo sucesso teatral de Claudine, tornando tanto Polaire quanto Colette em símbolos sexuais.
Polaire [The Cabinet Card Gallery]
Mais para frente, Colette criou uma personagem chamada Polaire para a série de Claudine, uma atriz argelina exótica, que tinha a função de enaltecer as qualidades da protagonista. Ela é descrita como uma rival sexual de Claudine.
Em Claudine s’en va, há várias ideias orientalistas em torno do Oriente Médio, onde a França também possuía colônias: “A aparência [de Claudine] não evocava o Oriente como os olhos de Polaire, aqueles admiráveis olhos de desconfiança... e também de servidão”.
O colonialismo francês também aparece de modo superficial na novela Chéri, de Colette, em que ela trata da relação amorosa entre um jovem de 18 anos com uma mulher 24 anos mais velha (provavelmente, inspirada no caso extraconjugal que teve com o seu enteado de 16 anos após se casar com o editor de jornais Henry de Jouvenel).
Como escreveu Nathan Dize em um texto ótimo sobre a presença do colonialismo no filme de Colette no site Nursing Clio, “o passado colonial francês está ao mesmo tempo presente e sem nenhuma profundidade, sendo tratado como parte da decoração da cultura literária burguesa”.
Agora chegamos à crème-del-a-crème orientalista de toda essa epopeia: Rêve d'Egypte, que tem todos os elementos do gosto colonialista da época. O “antigo” Egito estava de volta à moda nos salões burgueses da França e da Inglaterra, com seus sarcófagos e suas múmias, seu erotismo e espiritualidade.
Em suas apresentações, Colette valia-se de véus e tecidos finos para mostrar seu corpo, sem estar completamente nua, através da transparência das suas vestes, algo que também segue o tropo orientalista. Lembrando também que, além de uma múmia sensual, ela fez uma “cigana” antes, representação esta que entra no mesmo balaio de referências “orientais”.
Em seu artigo “Acting Out Orientalism: Sapphic Theatricality in Turn-of-the-Century Paris” (1994), Emily Apter analisa como a identidade lésbica francesa foi performada sob a mediação de um estereótipo culturalmente exótico. Era através de cenários ou objetos “orientais” que as mulheres apresentavam “novas” identidades sexuais.
A própria “revelação” da mulher por trás da múmia poderia ser uma forma de Colette e sua amante “revelarem” suas preferências sexuais publicamente: o que estaria escondido seria o desejo lésbico que pode vir à tona em uma esfera onírica.
O beijo lésbico é realizado nesse ambiente de sonho exotizado, trazendo a ideia de que o chamado “Oriente” é um local de maior liberdade sexual, até mesmo se comparada à avançada Paris do início do século 20. O “Oriente” era, portanto, o local onde os sonhos, inclusive de realização sexual, podiam se realizar.
Sobre a Palestina
Quem me conhece, sabe que a guerra no Oriente Médio está me deixando em frangalhos internamente. Aqui vão alguns conteúdos que fiz que abordaram a questão palestina.
Em 2019, entrevistei pra Quatro Cinco Um a escritora chilena Lina Meruane sobre seu belo livro Tornar-se Palestina, que saiu pela editora Relicário com tradução de Mariana Sanchez. Chega mais: “A literatura não cura ninguém, diz autora chilena — De origem palestina, Lina Meruane defende que é preciso desconfiar da linguagem, principalmente diante de conflitos políticos”
Por que ler Ghassan Kanafani, um dos mais importantes autores palestinos
Vídeo em que falo do livro Detalhe menor, da palestina Adania Shibli, traduzido por Safa Jubran e que saiu pela editora Todavia. Shibli, que mora parte do ano em Berlim, ia receber um prêmio agora na Feira de Frankfurt, mas a homenagem foi cancelada por causa da guerra; alguns tacharam o livro de antissemita, o que não se aplica. Vejam abaixo:
Pauladentro
Dia 31 de novembro é Dia das Bruxas (e Dia do Saci!) e vou conversar, às 19h, sobre o livro Tituba, a bruxa negra de Salém, de Maryse Condé, que saiu pela Rosa dos Tempos com tradução de Natalia Borges Polesso, no Circuito revista Claudia, que acontece na livraria Gato sem Rabo, com Maria Carolina Casati e mediação de Paula Jacob.
De 6 a 10 de novembro, estarei direto na Unifesp-Guarulhos participando da II Jornada Afro-Asiática, que debaterá a contribuição política e intelectual de Frantz Fanon e Edward Saïd. Na segunda, dia 6, participo das 13h às 17h de um debate sobre o filme La zerda et les chants de l’oubli (1982), de Assia Djebar, que usa imagens de arquivo para falar da colonização da Argélia pela França. Atenção, o filme será exibido às 12h!
A última edição deste ano do clube Leituras Extraordinárias, que eu e a Ana Rüsche coordenamos na Livraria da Tarde, aconteceu no dia 4 de novembro. A leitura da vez foi O homem da areia, de E.T.A. Hoffmann, e o nosso convidado especial foi o psicanalista e crítica literário George Amaral! Agora só ano que vem, com novidades: o clube vai se concentrar em livros de viagem!