Paulatinamente #8: Sexo, Hercule Poirot, konbinis, Kwaidan e Elsa de "Frozen"
Os seres humanos fora do padrão acabam sendo retificados
Como alertado no final da Paulatinamente #7, não sabia se ia ter energia nem inspiração para escrever a edição de dezembro. Bom, como veem, achei as duas coisas na minha viagem ao Japão. Mas vamos começar do começo: antes de viajar assisti ao filme Morte no Nilo, a mais recente adaptação cinematográfica dos casos do detetive Hercule Poirot, bela criação de Agatha Christie, que animava as minhas tardes de pré-adolescência.
O longa começa com uma cena nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial… e daí eu parei o filme e fui checar se era mesmo Morte no Nilo que eu estava assistindo porque não tinha nada disso no livro. Ok, fizeram auma inserção contextualizando a época. Mas meu choque continuou: Poirot (interpretado por Kenneth Branagh) estava na cena, é bombardeado e sua noiva (!) vai encontrá-lo no hospital, para ver seu rosto mutilado. Ela pede, então, que ele esconda as cicatrizes com o seu famoso bigodão. Não vou fazer uma crítica geral do filme, quero expressar meu incômodo com o fato de terem mudado completamente a história de Poirot.
Kenneth Branagh como um Hercule Poirot que nunca superou a perda da noiva
Pra quem não está familiarizado, Poirot é um detetiva belga com uma figura muito marcante: cabeça de ovo, careca e dono de um bigode chamativo. Outra característica (que o coloca ao lado de outros grandes detetives da literaturra, como Sherlock Holmes) é a ausência de qualquer tipo de relacionamento amoroso ou interesse da sua parte por se relacionar romanticamente com mulheres. Por um tempo, desconfiou-se que Poirot seria um homossexual enrustido, no entanto, agora ele pode ser considerado assexual. A questão aqui não é ficar buscando rótulos para designar as preferências sexuais de personagens fictícios, mas chamar a atenção para como figuras que fogem às normas da sociabilidade sexual-romântica incomodam.
Qual a razão de criarem essa história de amor malfadado para Poirot e até mesmo uma tensão sexual entre e a personagem de Sophie Okonedo no filme, sendo que ele é tão mais interessante justamente por não sentir desejo sexual? Personagens assim são disruptivos pois escapam aos ditames da sociedade capitalista e burguesa, que martela na nossa cabeça que só estaremos completos ao encontrarmos o nosso par (de preferência em uma relação heterossexual para levar à reprodução da mão de obra). A relação de casal é, afinal de contas, a mais importante que existe. E pessoas que se bastam em si mesmas (ou colocam a energia em outros tipos de relação) são vistas com estranheza.
“Se as pessoas acham que alguma coisa é esquisita, sentem-se no direito de invadir essa coisa para descobrir os motivos de sua esquisitice. É cansativo. Além de ser irritante ver essa arrogância toda. Às vezes, as pessoas me importunam tanto que tenho vontade de bater nelas com uma pá para que parem, como fiz no primário.”
Sakaya Murata, Querida konbini
É só olhar para a comoção em torno da sexualidade de Elsa, personagem de Frozen. A rainha do gelo tem como relação principal a sua irmã, mas mais ainda, consigo mesma, tentando se resolver com seus poderes e descobrir quem ela é, tanto no primeiro quanto no segundo filmes. O fato de uma princesa da Disney não ter um príncipe pra chamar de seu faz com que muitos especulem que Elsa seja lésbica e desejam que ela se relacione com uma mulher. Claro que esse desejo vem da nulidade de casais lésbicos em filmes da Disney e a vontade de ver esse tipo de relação na telinha. É uma posição política, além do que, outras princesas aparecem “sozinhas” em filmes mais recentes da Disney: Moana e Merida, de Valente.
No entanto, não deixa de ser curioso a indignação com o fato de Elsa continuar sem um par — o que a fazem ser descrita como assexual (mas, de novo, o objetivo aqui não é discutir esses rótulos). Manter Elsa como alguém que escolhe ficar sem par (ou até o celibato) continua sendo uma escolha transgressora, pois não se encaixa no que se espera de alguém como ela.
Elsa em Frozen: lésbica, assexual, celibatária, arromântica…?
Essas questões voltaram a me rondar em terras nipônicas, mais especificamente na forma de duas personagens da literatura japonesa contemporânea: Keiko, de Querida konbini, de Sayaka Murata (trad. Rita Kohl, Estação Liberdade, 2019), e Natsuke, de Peitos e ovos, de Mieko Kawakami (trad. Eunice Suenaga, Intrínseca, 2023).
A mais carismática das duas é, sem dúvida, Keiko, uma mulher de 36 anos que trabalha há 18 em uma konbini, lojas de conveniência que têm em todas as esquinas do Japão e vendem vários produtos, e nunca teve um relacionamento amoroso. Ela sempre foi uma garota estranha, que fugia às normas sociais, apesar de estar realizada trabalhando na konbini. A questão é que sua personalidade e comportamento social incomodam os outros à sua volta, e ela tenta se encaixar nesses padrões. No entanto, é o seu relacionamento com a konbini que preenche a sua vida e a torna uma pessoal funcional.
“Eliminar da própria vida tudo o que as pessoas acham esquisito ou curioso. Talvez seja esse o caminho para eu me curar. Nas últimas duas semanas, me perguntaram catorze vezes por que não me casei e doze vezes por que eu trabalhava como temporária numa konbini. Concluí que seria uma boa ideia começar eliminando o problema que fora mencionado mais vezes.”
Sakaya Murata, Querida konbini
Natsuke é uma personagem de uma clsse social pobre, que só teve referências de mães solo ao longo da sua criação e da sua família. Ela quer engravidar e ter um filho, mas é alguém que não consegue fazer sexo nem tem interesse por isso. No Japão (e na Coreia do Sul), as mulheres solteiras não podem fazer inseminação artificial: os hospitais só fazem esse procedimento apenas em casais em que o homem é infértil; as mulheres podem ter acesso ao procedimento de doadores individuais (um grande risco) ou indo ao exterior (algo que reequer muito dinheiro).
“Mesmo com o passar do tempo, o sexo nunca me proporcionou prazer, segurança ou satisfação, e toda vez que Naruse ficava por cima de mim, nu, inevitavelmente me sentia completamente sozinha.”
Mieko Kawakami, Peitos e ovos
O sexo aparece como algo visto como algo inferior no ensaio sobre as formigas de Lafcadio Hearn (1850-1904), uma figura que merece uma newsletter sobre pra ela, no interessantíssimo Kwaidan: histórias de fantasmas e outros contos estranhos do Japão antigo (trad. Sofia Nestrovski, Fósforo, 2023). Influenciado pelas ideias evolucionistasde Herbert Spencer, ele afirma a superioridade da civilização das formigas sobre os humanos pois anulam sua individualidade para trabalhar em prol do bem comum da comunidade.
Uma das características dessa superioidade viria do fato de muitas não precisarem fazer sexo para se reproduzir: “Se considerarmos a quantidade de pessoas que, mesmo hoje, e por motivos inteiramente não egoístas (sem mencionar os religiosos), se sentenciam ao celibato, não seria improvável que uma humanidade mais evoluída sacrificasse alegremente grande parte da sua vida sexual em nome do bem comum, sobretudo tendo ganhos específicos em vista. Um dos principais — se imaginarmos que a humanidade seriacapaz de controlar a própria vida sexual naturalmente, como fazem as formigas — seria um aumento abundante da longevidade. Os exemplares mas elevados dessa humanidade que terá superado o sexo seriam capazes de realizar o sonho de viver mil anos”.
Por fim, me recuso a falar dos incels justamente por serem “celibatários involuntários” e estes sim, serem um perigo pra sociedade diante das suas frustrações sociais e sexuais. O contrário dessas personagens (e pessoas da vida real) assexuais e/ou que escolhem uma vida que não gira em torno de um par sexual, subvertendo o que a sociedade nos diz ser a “normalidade”.
“O padrão do mundo é compulsório e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. Os seres humanos fora do padrão acabam sendo retificados.”
Sakaya Murata, Querida konbini
Desejo às criaturas estranhas que leem esta newsletter (e também às normalizadas hehehe) um bom final de ano! E que possamos nos encontrar em 2024!