Paulatinamente #9: Julieta Hernández, Annemarie Schwarzenbach e outras mulheres que viajam sozinhas
Duas mulheres viajando sozinhas! Como você conseguiu viajar? Como se alimentou, onde dormiu? Nada desagradável aconteceu com você?
O começo do ano foi recebido com a notícia do assassinato de Julieta Hernández, palhaça e bonequeira venezuelana que viajava o Brasil de bicicleta há quatro anos. Ela estava indo visitar sua família na Venezuela quando foi vítima de um homicídio tenebroso em Presidente Figueiredo, no Amazonas. Ela foi estuprada e assassinada por um casal, que está detido. Não vou dar mais detalhes sobre o crime, que já foi bastante noticiado.
Julieta Hernández
Não conhecia Julieta antes da sua morte, o que é uma pena, pois parecia uma pessoa maravilhosa. No entanto, seu assassinato bateu forte aqui dentro. Tanto que fugi um tempo de saber mais sobre o ocorrido. Porque, claro, me identifiquei e lembrei de amigas ou de outras mulheres que conheci na estrada que poderiam estar no lugar de Julieta. O patriarcado sempre nos acompanha. Os riscos estão aí, tanto para quem se movimenta quanto para quem fica.
Eu me lembrei de situações pelas quais passei quando estava viajando sozinha e que poderiam ter dado muito errado – em especial na Malásia, na capital Kuala Lumpur, quando voltava a pé para o hotel à noite numa rodovia (não consegui achar um táxi na rodoviária e os funcionários não fizeram nenhuma questão de me ajudar) e um carro barulhento com homens parou no acostamento um pouco à minha frente e pareciam estar mexendo comigo. Eu gelei na hora sem saber o que fazer. A sorte é que o carro não se demorou e logo partiu. Enfim, estou aqui. Lembrei também das histórias de amigas e de outras mulheres que conheci em viagens contando dos seus perrengues. Tem cada história que eu ouvi...
A questão da segurança pelo fato de ser mulher sempre pega e não tem como ser diferente. O medo é uma constante, mas eu me prometi que não deixaria de fazer certas coisas por causa desse sentimento. Não deixar de ir, mas estando lá, saber tomar cuidado. Uma amiga uma vez me disse: “Ainda bem que você tem medo, por isso não temo que algo possa acontecer com você”. Foi aí que entendi que o medo, na verdade, pode ser um grande aliado. O segredo é não deixá-lo tomar conta de tudo.
Por um tempo eu me ressenti de ser mulher porque achava que eu não podia viajar sozinha para certos países. Porque eu tinha mais medo do que gostaria de admitir. Isso foi logo depois de ler On the road, do Jack Kerouac, quando tinha lá meus 26 anos. Ali, as mulheres estão excluídas da viagem, ou estão em casa esperando seus homens, grávidas ou cuidando dos filhos, ou sendo mortas por seus parceiros (ainda que acidentalmente), ou sendo deixada de lado pelos amigos protagonistas. As mulheres estão sempre à margem nessas histórias. O papel relegado a nós é o de Penélope, esposa de Odisseu em A odisseia, de Homero, no que talvez seja a primeira narrativa de viagem da literatura. Quem disse isso não fui eu, mas Sónia Serrano no livro Mulheres viajantes.
Acho linda essa capa!
Quebrar com isso é importante, como li na fala da empresária Nataly Castro, mulher negra que já visitou 180 países, no Fantástico. “A viagem solo na vida de uma mulher é muito transformadora. Você vê que você pode, que você tem autonomia, que o mundo é bom, você tem boas conexões, e essa morte eu vejo como um reflexo da cultura violenta com a mulher, não com a mulher viajante.” Além de ter de lidar com o machismo, ela ainda precisa enfrentar o racismo nas viagens. Sim, mulheres brancas viajam de forma muito mais tranquila que as não brancas.
Nesse sentido, foi importante pra mim descobrir outras mulheres que viajam na atualidade e que viajaram ao longo da história. É tipo: “Olha, não estou sozinha!” (sim, ecos de Virginia Woolf em Um teto todo seu). Além da minha querida Isabelle Eberhardt, sobre quem escrevi no livro Direito à vagabundagem, lançado em 2022 pela editora Fósforo, com tradução de Mariana Delfini, existem muitas outras como nós. A que eu li mais recentemente foi a também suíça Annemarie Schwarzenbach (1908-1942), que viajou por Ásia, Europa e Estados Unidos.
A editora Mundaréu publicou ano passado o encantador Todos os caminhos estão abertos: viagem ao Afeganistão 1939-1940, com tradução de Giovane Rodrigues e Silvia Naschenveng. São textos sobre a viagem que a jornalista, arqueóloga, escritora e fotógrafa lésbica fez com Ella Maillart (1903-1997), outra grande viajante. O que é interessante de notar nesses textos é a surpresa de ver duas mulheres viajando sozinhas, e as perguntas continuam a mesmas. NÃO MUDOU NADA!!!
“Duas mulheres viajando sozinhas! Como você conseguiu viajar? Como se alimentou, onde dormiu? Nada desagradável aconteceu com você?”
Annemarie Schwarzenbach no texto “Duas mulheres sozinhas no Afeganistão”, que estão em Todos os caminhos estão abertos
Em outra parte desse mesmo texto, ela conta que um suíço havia lhe perguntado “se era de todo possível comer os alimentos dos nativos, e se eu não temia dormir, sem medida de precaução, em meio a essa gente”. Não é só o fato de estarem sozinhas que impressiona esse homem, mas o fato de terem viajado e sobrevivido em um país “selvagem”, com muçulmanos, como o Afeganistão. Schwarzenbach é cirúrgica ao responder logo em seguida: “Esse bom homem realmente não tinha a menor ideia da hospitalidade afegã”. Isso já quebra qualquer preconceito e estereótipo que o leitor (de qualquer época) teria com relação a esse país (ao qual também tive o privilégio conhecer em 2013).
Annemarie Schwarzenbach e Ella Maillart
Pra finalizar, gosto muito de uma frase da Gaía Passarelli no livro Mas você vai sozinha?, em que ela conta alguns “causos” das suas viagens pelo mundo, muitas dela feitas sozinha: “‘E você vai sozinha?’, me perguntaram várias vezes. Sim, eu fui e continuo indo”. Que continuemos, então, indo, acompanhadas ou sozinhas.
Paulaescreve
Em dezembro, escrevi a resenha do livro De uma a outra ilha, de Ana Martins Marques, para a revista Quatro Cinco Um. Livro lindo, que eu recomendo muito! Trechinho: “De uma a outra ilha reúne a poesia fragmentada de Safo e a situação trágica dos imigrantes na Europa, valendo-se de uma variedade de fontes — de referências a Anne Carson e estudos sobre poesia grega a reportagens na imprensa e páginas da Wikipédia. Com isso, a autora atinge uma espécie de Olimpo literário: faz uma poesia política e engajada sem cair no didatismo ou na militância ingênua, e sem abrir mão do seu sofisticado estilo poético.”
Paulaouvindo
Saiu este mês no podcast 451 MHz uma entrevista que gravei com a Nara Vidal antes de sair da Quatro Cinco Um sobre as personagens femininas de Shakespeare, tema do seu livro Shakespearianas. Conversamos sobre Ofélia, Desdêmona, Lady Macbeth, Viola, Portia e muitas outras!
Pauladentro
Os livros e as datas dos encontros do Leituras Extraordinárias, clube de leitura que coordeno com a Ana Rüsche na Livraria da Tarde, deste semestre já saíram! O tema deste ano é VIAGEM! Segue a agenda:
28 de fevereiro, quinta: Samarcanda, de Amin Maalouf. Trad. Marília Scalzo (Ed. Tabla). Com a participação de Jemina Alves.
14 de março, quinta: Todos os caminhos estão abertos, de Annemarie Schwarzenbach. Trad. Giovane Rodrigues e Silvia Naschenveng (Ed. Mundaréu)
18 de abril, quinta: Marinheira no mundo, de Ruth Guimarães. (Primavera Editorial)
27 de maio, segunda: Exploração, de Gabriela Wiener. Trad. Sérgio Molina (Ed. Todavia)
27 de junho, quinta: Indígenas de férias, de Thomas King. Trad. Davi Boaventura, (Ed. Dublinense)
11 de julho, quinta: Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt, de Paula Carvalho. Trad. Mariana Delfini (Ed. Fósforo)