Paulatinamente-Viajantes #1: Lygia Fagundes Telles na China & Ai Qing na América do Sul
Uma nova seção (?) desta longa newsletter voltada para literatura de viagem & outras dicas culturais
Bom dia a todes! Estou animada, pois aqui inauguro uma nova seção do Paulatinamente voltada para viajantes, tema da minha pesquisa de muitos anos. O foco são em viajantes dos séculos XIX e início do XX, mas quero trazer aqui além desses relatos de épocas mais remotas, outros mais atuais e não tão presos à minha trajetória acadêmica. Não escondo que a inspiração foi a edição 04 da newsletter A Lábia da Ana Lima Cecilio, voltada para literatura viagem, e o incentivo de Thiago Ambrósio Lage, da Mercúrio em Peixes, e da Ana Rüsche, da Anacronista. Ah, prometo nas próximas fazer títulos mais enxutos.
Itinerário: China
Passaporte para a China, de Lygia Fagundes Telles, reúne as saborosas crônicas da grande escritora paulista publicadas no jornal A Última Hora em 1960. Ela fez parte de uma delegação de escritores brasileiros enviados para representar o Brasil durante as comemorações dos dez anos da Revolução Chinesa que levou Mao tsé-tung ao poder. O texto de Lygia é simplesmente delicioso, ainda que não traga pensamentos muito profundos sobre a China. Mas esse não é o foco. O importante aqui é ver como a viagem de ida e volta demorava horrores — ela saiu do Brasil em 24 de setembro e teve de passar por Dakar, Paris, Praga, Moscou, Omsk e Irkutsk até chegar em Beijing em 29 de setembro. É preciso lembrar que o tempo de voo dos aviões da época era mais curto. Em Beijing, ela só pôde ver o que os seus guias chineses lhe permitiram. Visitou a Casa do Escritor na capital, conheceu outros autores, viu Ciranda de Pedra ganhar uma tradução chinesa, ganhou uma edição bilíngue (chinês e francês) de poemas de Mao, ouviu impropérios sobre Chiang kai-shek, apaixonou-se por Shangai (sim, com “sh”) e se surpreendeu com a falta de “vaidade” das mulheres que não se maquiavam nem procuravam usar vestidos elegantes em nome da austeridade política. Ah, as fotos que acompanham a edição são preciosas. Preciso agradecer a Amanda Cuba, pois foi ela quem me presenteou esta pérola.
Terra da ficção científica?
A Ana Rüsche é outra cronista de mão cheia, não à toa sua newsletter, como a minha, tem um trocadilho ótimo com seu nome: Anacronista. E daí ano passado ela publicou Ferozes melancolias pela editora Rua do Sabão, uma reunião de textos publicados nessa newsletter. Um deles é “Sonhos e futuro na terra do urso panda” (um dos meus preferidos), no qual ela narra a sua ida ao principal evento de ficção científica do mundo, o World Con, em Chengdu, na China. Foi a primeira vez que esse encontro aconteceu em um país que não fica na América do Norte nem na Europa. Os chineses estão investindo nessa área da literatura que pensa o futuro e um dos grandes astros dessa vertente é Cixin Liu, com a trilogia O problema dos três corpos, primeiro chinês a ganhar o Prêmio Hugo, o mais importante da ficção científica — li o primeiro e gostei bastante. Entre suas peripécias na cidade chinesa, Ana conta sua primeira experiência em terras chinesas (ela retornou ao país ano passado para um festival de poesia cujo diário de bordo aguardo ansiosamente) e mostra sua estupefação diante da criação do Museu da Ficção Científica em Chengdu.
Fácil de ler
A jornalista da Globo Sônia Bridi foi a primeira correspondente brasileira em terras chinesas nos anos 2005 e 2006. Dessa experiência surgiu esse livro gostoso de ler, com histórias e anedotas do tempo que trabalhou na China. Lembro que peguei esse livro emprestado da biblioteca da escola de idiomas Nin Hao, quando achava que poderia me embrenhar pela língua chinesa. A história que mais me lembro é como ela foi tratada por um acupunturista quando estava passando mal de saúde. Em tempo, laowai, palavra que dá título ao livro é uma forma pejorativa de chineses chamarem estrangeiros.
Filmes & afins 1
O documentário No intenso agora, de João Moreira Salles, traz filmes caseiros gravados pela família do cineasta de uma viagem que sua mãe fez à China, em 1966, durante a fase inicial e mais aguda da Revolução Cultural. Tem gente que não gosta, mas quando vi o filme lembro de ter gostado bastante, em especial das cenas que mostram a China. Tem na Netflix, Globoplay e Primevideo.
Do lado de lá
A poesia também pode ser relato de viagem, tanto que Viagem à América do Sul é uma reunião de poemas escritos pelo grande poeta chinês Ai Qing (1910-1996) ao longo de sua viagem da China até o Chile, para comemorar o aniversário do seu amigo Pablo Neruda em 1954, junto a outros literatos chineses. É uma caprichada edição bilíngue da Editora Unesp, com tradução de Fan Xing e Francisco Foot Hardman (também responsável pelo projeto, organização e introdução). Como a viagem de Lygia, vemos como o trajeto demora alguns dias, passando pelas mesmas localidades: China-Rússia-Tchecoslováquia-Senegal-Brasil-Argentina-Chile. Um dos poemas mais belos é “Atlântico”, um libelo anticolonialista e anti-imperialista, escrito diante do horror da colonização francesa ao visitar Dakar. Um trechinho pra dar água na boca:
A paz fingida do Atlântico,
Parece a Esfinge no mito,
Que encara os transeuntes,
Com sorriso misterioso,
E levanta um pé à frente,
E lança perguntas estranhas,
Quem não adivinha o enigma,
Cai e morre a seus pés.
O Brasil é tema de três poemas curtos, mas bastante argutos: “Jovem negra cantando”, em que aponta como a mulher negra feliz cuida da chorona criança branca do patrão; “Onde os negros moram”, sobre as favelas cariocas; e “Canção piedosa”, sobre um homem negro que parece viver nos canos das galerias pluviais da cidade. Ao retornar ao seu país, Ai Qing é logo confinado e impossibilitado de sair da China. Curiosidade: ele é pai do artista dissidente Ai Wei Wei.
Outros olhares estrangeiros
Ode à errância é o título que o poeta sírio Adonis deu esse volume da edição brasileira que reúne três relatos de viagem na forma de poesia: Concerto Alquds, de 2012, sobre Jerusalém; Zócalo, de 2014, sobre Cidade do México e outras localidades do país americano; e Osmanthus, de 2019, sobre Beijing e a geografia da Montanha Amarela. Foi publicado pela editora Tabla com tradução sempre celestial de Michel Sleiman. Osmanthus é uma flor que é encontrada na China e outras regiões da Ásia (“Aqui neste lugar foi plantada em meu nome uma árvore de Osmanthus”/ “Árvore de Osmathus, eu lhe trago esta notícia”). Como diz em verso de “Notas na Rota da Seda”: “Os árabes só pedem à poesia a solução de seus problemas,/ o que em si é um primeiro problema”. E, por fim, se despede de Confúcio e da Montanha Amarela em “Imagino ter encontrado Confúcio na Rota da Seda”.
Filmes & afins 2
Quem não conhece o cineasta chinês Jia Zhangke deveria conhecer. É um dos grandes cronistas da China contemporânea, ajudando a nós entender um pouco as complexidades do seu país de origem. O Mundo, ou The World (2004), é um dos seus filmes que mais me impactou. Sobre uma mulher que sonha em viajar para fora da China enquanto trabalha num parque em Beijing chamado The World, que traz miniaturas de vários monumentos do mundo — uma espécie de Epicott Center chinês. Como era difícil os chineses viajarem para o estrangeiro, criaram esse parque como uma forma de trazer o mundo para a China. Eu vi esse filme num DVD pirata que comprei quando estava na capital chinesa em 2007, fiquei maluca com esse parque e separei um dia para visitá-lo. Não era incomum que chineses me parassem para tirar fotos na frente de monumentos como a Praça Vermelha de Moscou, afinal, era uma estrangeira na frente de um local estrangeiro. É uma pena que esse filme não esteja disponível em nenhum streaming no Brasil; tem inteiro no YouTube, mas só com legendas em chinês.
Na bagagem
Foi finalmente lançado no Brasil pela editora Tinta-da-China Brasil o livro Mulheres viajantes, da escritora e pesquisadora portuguesa Sónia Serrano — cuja edição original portuguesa eu já possuía. Traz ensaios deliciosos sobre o que é a viagem e os obstáculos que as mulheres tiveram que superar para poderem viajar, junto a pequenas biografias de viajantes brancas europeias e estadunidenses. A versão brasileira é mais imponente — a portuguesa é mais uma edição de bolso — e traz algumas boas adições como a biografia de Tamara Klink e menciona outras viajantes brasileiras que publicaram relatos de viagem: Cecília Meirelles, Mariana Kalil, Carolina Montenegro, Heloisa Schurman, Martha Medeiros, Gaía Passarelli, Rebecca Aletheia, Manoela Ramos e Flay Alves. O Brasil também aparece nos relatos de duas mulheres que fizeram a volta ao mundo de barco: a francesa Jeanne Baret (1740-1807) e a austríaca Ida Pfeiffer (1797-1858). Aos curiosos, escrevi uma resenha dessa obra para a revista Quatro Cinco Um (voltada para mulheres viajantes!): Quebrar a maldição de Ulisses.
Pauladentro
Inclusive, fui convidada para participar do lançamento de Mulheres viajantes junto com minha amiga e muy viajante Gaía Passarelli, autora de Mas você vai sozinha? e Tá todo mundo tentando. Dia 13 de março, quinta-feira, na Livraria da Tarde, em São Paulo. Quem puder, apareça lá para dar um alô!
Espero que tenham gostado dessa versão da newsletter. Me ajuda a me manter focada na minha pesquisa e me deixa animada para dividir com vocês esse tipo de literatura que eu amo. Pelo menos, crio a ilusão de que tenho interlocutores. Até a próxima!