Paulatinamente-Viajantes #2: Quando indígenas são os protagonistas da viagem
A Terra sem Males dos guarani e olhares indígenas sobre a Europa
A segunda edição da Paulatinamente voltada para viajantes procura se voltar para as viagens realizadas pelo olhar de povos indígenas. Importante dizer aqui que, por vezes, esses deslocamentos não podem ser chamados propriamente de “viagens”, pois foram e são deslocamentos forçados. A viagem, nesse sentido, não é vista como um privilégio de classes abastadas (aliás, já leram a newsletter anterior sobre a série White Lotus, que é sobre viagens de super ricos), mas como uma imposição de grupos opressores (em geral, brancos europeus).
Itinerário: Deslocamentos sob o olhar de indígenas
Tava – A casa de pedra (2012) é uma produção do Vídeo nas Aldeias, dirigida por Ariel Kuaray Ortega, Ernesto de Carvalho, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Vincent Carelli. Vi no Cinema no Museu do Museu do Ipiranga, que terá semestrais. Feito pelo olhar dos guarani mbya, o filme mostra o olhar desse grupo para a própria história, contrastando com o modo como são retratados pelos nossos livros de História, inclusive com eles assistindo ao filme A Missão, de 1986, que é uma carnificina. Se nós chamamos as suas crenças de “mitos”, para os cineastas indígenas esses “mitos” fazem parte da sua “história oficial”, que também é alvo de divergências entre os povos guarani.
O ponto focal da investigação tem a ver com a Terra sem Males (Yvy marãey'ỹ, em guarani), um lugar para onde os guaranis caminhariam para encontrar felicidade, fertilidade, imortalidade e ausência de fome e guerras, além de ser símbolo da luta dos guarani por seus direitos e da resistência à colonização. No centro, a Tava, a casa de pedra construída pelos próprios guarani mbya e que fizeram parte das missões jesuíticas dos Sete Povos das Missões, hoje no Rio Grande do Sul. Seria realmente um local importante da Terra sem Males, ou os guarani do século XVIII teriam sido enganados pelos padres? Os cineastas percorrem a sua própria caminhada nessa investigação, passando pelos estados do RS, SP e RJ e pela província de Misiones na Argentina. Importante lembrar que antes da invasão europeia os guarani circulavam livremente pelos territórios que hoje compõe Argentina, Paraguai e sul e sudeste do Brasil. Isso causa um contraste com os guarani parados nas fronteiras entre os países, mostrando a mudança drástica entre uma época e outra.
Olhares indígenas sobre a Europa
Thomas King, autor de ascendência Cherokee e grega (e um dos preferidos de Margaret Atwood), publicou Indígenas de férias, livro extremamente divertido sobre um casal indígena, Mimi (Blackfoot) e Bird (Cherokee) que viaja pela Europa, mas em especial em Praga, na República Tcheca, seguindo o trajeto de cartões-postais enviados por Leroy Bull Shield, tio de Mimi, depois de ele ter sido retirado de sua reserva indígena para se tornar atração em um show de faroeste. Leroy havia levado consigo uma bolsa Crow, um importante artefato da família, e Mimi quer recuperá-la. Uma leitura leve mas que também trata de temas profundos e violentos da história americana.
Ainda não li, mas quero muito ler On Savage Shores: How Indigenous Americans Discovered Europe, de Caroline Dodds Pennock, livro de não ficção que inverte o olhar das viagens e mostra as histórias dos indígenas que cruzaram o Atlântica e desembarcaram na Europa após 1492, pós-invasão de Cristóvão Colombo e vai até 160— seja como diplomatas ou representantes dos seus povos para negociar com europeus, seja à força, como escravizados, e até como companheiras ou filhos de homens europeus. Entre as trajetórias contadas estão a de Martín Cortés, filho de Hernan Cortés e La Malinche, dois dos responsáveis pelo domínio espanhol sobre os astecas, assim como de vários indígenas “brasileiros”, como Catarina Paraguassu, entre outros. Como o recorte temporal do livro vai até 1607, a história de Mataotaka (aka Pocahontas) não foi incluída. Espero ter mais coisas pra falar depois que eu ler o livro, porque muito me interessa esses relatos “invertidos”. em relação ao olhar eurocêntrico, mas posso adiantar que a presença de populações indígenas das Américas na Europa era algo bastante comum nos séculos XVI e XVII.
Se, por vezes, os registros e documentos históricos não dão conta de contar certas histórias, a ficção pode servir como uma ferramenta importante (sim, acho que um dos “futuros” da disciplina da História está no conceito de “fabulação histórica” da Saidyia Hartman). É isso o que faz Micheliny Verunschk em O som do rugido da onça, ganhador do Prêmio Jabuti de Livro do Ano de 2022. Em um dos dois recortes temporais desse romance, a autora imagina como foi a vida de duas crianças indígenas, um menino da etnia juri e uma garota miranha (batizada no livro de Iñe-e), que foram levadas para a Alemanha como escravizadas pelo Carl von Martius, o botânico alemão responsável por escrever a primeira história do Brasil e fazer uma coleta de espécimes botânicas no país. Essa, para mim, é a parte mais forte do romance, que traz rios, onças e outros seres como narradores do horror da colonização.
Exploração, da peruana Gabriela Wiener, podia ser um livro que daria tudo errado. Imagina aliar relato de viagem, busca por raízes familiares e questionamentos sobre poliamor. Foi um dos melhores que li ano passado. Wiener resgata sua trajetória familiar a partir de Charles Wiener (1851-1913), um explorador austríaco-francês que viajou por parte da América do Sul, especialmente por Peru, Chile e Bolívia, tendo ficado conhecido por ter escalado o Illimani e ter se aproximado de redescobrir Machu Picchu. Parte do relato conta de um indígena que foi levado para a Europa por Wiener, mas cuja história se encerra aí, ficando uma lacuna na História.
Filmes & afins 1
Documentário esplêndido, El boton de nácar, do chileno Patrick Guzmán, inicia com Orundellico, conhecido como Jeremy Button ou Jemmy Button (1815–1864), um indígena yagan (os nômades da água) das ilhas da Terra do Fogo, na atual Argentina e Chile. Ele foi levado para a Inglaterra por Robert FitzRoy, capitão do HMS Beagle, e se tornou uma “celebridade” na Europa por um período e teve um fim trágico. O nome do filme toma emprestado o botão de pérola, usado por alguns povos da Terra do Fogo como moeda de troca. Infelizmente, não achei em nenhum streaming aqui no Brasil.
Do lado de lá
A primeira vez que os brancos ouviram falar do “mito” da Terra sem Males foi através do etnógrafo alemão Curt Unkel, mais conhecido como Curt Nimuendajú. Na sua descrição no livro As lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani, de 1914, a Terra sem Males lembra a ideia de um Paraíso em que as flecham caçam sozinhas, o alimento é farto e fácil e onde não há guerra, nem morte, nem doença, propondo uma explicação religiosa para as grandes migrações guarani. O jovem alemão foi parar em São Paulo, em 1903. Entre 1905 e 1907, viveu com os Apapocúva-Guarani, no interior do estado paulista, e foi aí que desafiou as fantasias das histórias românticas sobre os indígenas, aprendeu o idioma guarani, foi adotado pelo grupo e recebeu o nome "Nimuendajú", que significa “aquele que fez sua morada”.
A ficção distópica A morte e o meteoro, de Joca Reiners Terron, evoca a Terra sem Males, envolvendo a destruição da Amazônia. O grupo indígena fictício que no enredo está em vias de extinção se refere aos brancos como “o Grande Mal”.
Quem se interessar mais sobre o tema pode ouvir dois episódios do podcast A Terceira Margem do Reno que tratam do tema: Aquele que viaja não deveria ter túmulo e É um blues em preto e branco.
Novas viagens
Fui convidada pela querida Nara Vidal para traduzir um livro de viagem! Letters Written in Sweden, Norway, and Denmark, de 1796, de Mary Wollstonecraf, para o selo Inglesa. Ela ficou conhecida por ser uma das primeiras mulheres a pensar na educação feminina na Inglaterra no século XVIII e, além de tudo, mãe de Mary Shelley, a do Frankenstein. Estou animada!
Foi lançado no fim do ano passado a primeira tradução! Susan Sontag: A entrevista completa para a revista Rolling Stone, concedida a Jonathan Cott, e que saiu pela Bazar do Tempo. É uma entrevista meio “itinerante”, pois foi concedida em Paris e Nova York em momentos diferentes.
Editei dois livros para a editora Tabla! Ave Maria, do iraquiano Sinan Antoon, traduzido por Jemima Alves, e O desaparecimento do Sr. Ninguém, do argelino Ahmed Taibooui, traduzido por Felipe Benjamim Francisco.
Adoro a história da relação entre o poeta Rumi e Shams de Tabriz, por isso fiquei muito feliz de poder fazer a revisão deste belo livro que trata do tema: O faminto, de Nahal Tajadod, traduzido por Regis Mikhail e que sairá em breve pela editora Ercolano. Aproveitem que tá na pré-venda!
Pauladentro
Aulão online sobre “Mulheres Viajantes na Literatura” na Casa Inventada. Vou contar histórias de mulheres incríveis que provavelmente vocês nunca ouviram falar. Dia 29 de abril das 19h às 22h, ao vivo pelo Google Meet. Mais informações aqui. Dei um spoiler no meu Instagram sobre algumas das mulheres sobre as quais vou falar.
O retorno do curso Introdução à Ásia através da Literatura, parceria com a Livraria Aigo. Mas dessa vez vai ser ON-LINE! São quatro encontros em que vamos abordar Orientalismo, a história das Coreias, o Japão e seus mitos e a Rota da Seda. Informações aqui no Instagram.
Paulafoi
“Tecendo textos: Direito ao descanso”, no Sesc 14 Bis, junto com Steffany Dias, tradutora de “Descansar é resistir”, de TriciaHersey, e mediação de Luara Calvi Anic. Falamos da vagabunda Isabelle Eberhardt e do nosso livro Direito à vagabundagem.
Gaía Passarelli e eu no lançamento do livro Mulheres Viajantes, de Sónia Serrano, na Livraria da Tarde.
Sempre com recomendações robustas e interessantes 🧡 Adoro a news
Assino embaixo sobre Micheliny, Wiener e El botón de nacar. As outras recomendações foram anotadas, em especial Thomas King, que achei interessantíssimo. Muito legal saber que vais traduzir um livro da Wollstonecraft no contexto escandinavo!