Paulatinamente-Viajantes #3: Migrantes, deslocados, refugiados e exilados
Demorou, mas chegou! Maio e junho foram/estão muito intensos de trabalho, mas consegui essa brecha, então vou aproveitá-la!!! A terceira edição da Paulatinamente voltada para viajantes se volta para outros grupos que não podem ser chamados de “viajantes” per se, pois essas pessoas aqui se viram obrigadas a se deslocar para sobreviver: migrantes, deslocados, refugiados e exilados. Atualmente, são no total 120 milhões de pessoas deslocadas à força, incluindo 43 milhões de refugiados, dos quais 40% são crianças, segundo a Agência da ONU para os Refugiados (Acnur). Existem vários relatos e registros dessas experiências, mas aqui vão alguns que entrei em contato mais recentemente e que me marcaram.
Itinerário: Migrantes, deslocados, refugiados, exilados
Você deu em pagamento o meu país, do poeta sírio-palestino Ghayath Almadhoun, é um dos melhores livros que li este ano. A obra acaba de ser lançada no Brasil pela editora Ars et Vita, com tradução direta do árabe de Alexandre Chareti. Essa antologia, que reúne todos os poemas de Eu te trouxe uma mão decepada (2024) e alguns de Não posso estar presente (2014) e Adrenalina (2017), não é para quem tem estômago fraco. Há sangue, corpos mutilados, membros amputados, fedor de cadáveres apodrecendo. Não há palavras de consolo nem o romantismo da ideia de resistência, e muito menos alívio para os sobreviventes. “Você diz que eu sobrevivi à guerra, não, minha querida, ninguém sobrevive à guerra, unicamente eu não morri, permaneci vivo apenas”, arremata em “O mármore azul”. Ghayath Almadhoun não deve então ser apresentado como um sobrevivente, mas apenas como um homem que está vivo. E, para tal, ele percorreu um longo caminho.
Sua família paterna foi expulsa de Ashkelon em 1948, por Israel, juntando-se aos 750 mil palestinos que foram retirados à força de suas casas. Seus avós estabeleceram-se, então, no que hoje é o campo de refugiados de Khan Yunis, em Gaza. Depois da Guerra de 1967, seu pai foi preso por Israel e levado para o lado egípcio do deserto do Sinai para morrer de fome — o que não aconteceu. Ele foi para a Jordânia e, em seguida, para a Síria, onde conheceu a mãe de Almadhoun, que é síria. Nascido no campo de refugiados de Yarmuk, em Damasco, em 1979, Ghayath Almadhoun, já adulto, viu o irmão ser morto em meio à guerra civil síria, que ainda não acabou. Temendo o governo de Bashar al-Assad, ele fugiu para a Europa, conseguiu se estabelecer em Estocolmo, na Suécia, em 2008, onde, anos depois, obteve a cidadania sueca. Hoje, o poeta mora em Berlim, na Alemanha.
Esse aqui é um trecho da resenha-entrevista que escrevi sobre o livro na revista Quatro Cinco Um, na qual ele fala ainda de como o exílio é o local privilegiado para se pensar novas epistemologias e de produções artísticas. Aliás, vou mediar uma mesa com Almadhoun junto com o poeta maranhense Josoaldo Lima Rêgo, autor de A menor das tempestades, publicado pela Editora 34. A conversa acontece na sexta, dia 20 de junho, às 17h45, no Auditório Armando Nogueira.
Pachinko, de Min Jin Lee (Intrínseca, 2017, trad. Marina Vargas) é um grande épico sobre um grupo que foi bastante invisibilizado pela história: os coreanos que imigraram para o Japão durante o período da colonização japonesa. O livro é dividido em três partes, abrangendo desde 1910 (durante a ocupação japonesa da Coreia) até os anos 1980. A narrativa começa com Sunja, uma jovem coreana que engravida de um homem rico e casado (Hansu). Quando um pastor cristão (Isak, meu amor!) se oferece para casar-se com ela e levá-la ao Japão, inicia-se uma saga familiar marcada por preconceito, pobreza e resiliência. No Japão, vê-se a discriminação contra os zainichi, nome dado a estrangeiros que moram no país, e são tratadoss como cidadãos de segunda classe, mesmo após gerações, e como elas acabam se envolvendo com atividades do submundo, como o pachinko , casas de jogos de azar ligadas a atividades escusas da máfia. A série da Apple+ é muito bonita também.
Homens ao sol é um romance do escritor palestino Ghassan Kanafani (1936–1972, morto por um atentado pelo Mossad junto com sua sobrinha jovem), publicado em 1963. É uma das obras mais importantes da literatura palestina e uma crítica contundente ao deslocamento e à desesperança do povo palestino após a Nakba (a catástrofe de 1948, quando centenas de milhares de palestinos foram expulsos de suas terras). O livro narra a jornada de três homens palestinos que tentam emigrar clandestinamente do campo de refugiados onde vivem (no Iraque) para o Kuwait, em busca de trabalho e sobrevivência. Eles contratam um motorista para atravessar o deserto escondidos em um tanque de água de caminhão. No entanto, o final trágico simboliza a opressão e a invisibilidade dos refugiados palestinos.
Mahmoud Darwish (1941–2008) é o grande poeta do exílio e da Palestina. Memória para o Esquecimento é um de seus melhores livros, publicado em 1995. No Brasil, foi publicado pela editora Tabla com tradução de Safa Jubran. A obra é uma mistura de memórias, poesia e reflexão filosófica, escrita em prosa lírica, que relata a experiência do autor durante o bombardeio israelense a Beirute em 1982, durante a Guerra Civil do Líbano. Em 1982, Israel invadiu o Líbano com o objetivo de expulsar a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que tinha sua base em Beirute. Darwish, que estava na cidade na época, viveu sob cerco e bombardeios por semanas, junto com outros palestinos e libaneses. O livro não segue uma narrativa linear, mas alterna entre relatos do cotidiano sob os bombardeios, reflexões sobre a identidade palestina, o exílio e a memória. Misturando realidade e sonho, ele se vale de uma linguagem poética para expressar o horror da guerra e a resistência pela palavra.
Filmes & afins
As nadadoras (2022), de Sally El Hosaini, é um filme realmente emocionante. Conta a história real das irmãs sírias Yusra e Sara Mardini, que fugiram da guerra na Síria em 2015 e se tornaram refugiadas e atletas olímpicas. O filme começa mostrando a vida das irmãs em Damasco, antes da guerra, onde elas treinavam como nadadoras competitivas. Com o agravamento do conflito (cena impactante: elas dançando numa varanda enquanto bombas detonam nos céus), a família decide que Yusra e Sara devem fugir para a Europa em busca de segurança. A jornada é perigosa: elas enfrentam travessias de barco superlotados, contrabandistas e campos de refugiados. Em um momento crucial, quando o barco que as levava da Turquia à Grécia começa a afundar, as irmãs (excelentes nadadoras) ajudam a salvar os outros passageiros, puxando a embarcação até a costa. Após chegarem à Alemanha, Yusra consegue retomar seus treinos e, em 2016, compete nas Olimpíadas do Rio como parte da Equipe Olímpica de Refugiados, um marco simbólico para atletas deslocados pelo mundo. Disponível na Netflix.
É possível o retorno?
Tornar-se Palestina, da chilena Lina Meruane (traduzido por Mariana Sanchez pela editora Relicário) tem se tornado um dos principais títulos para falar sobre a questão Palestina para o público mais amplo. A autora, cujo pai é de origem palestina, escreve ensaios sobre se é possível retornar a esse país que lhe é desconhecido. Ela retorna (no lugar do pai dela, talvez?), repensa as questões complexas que giram em torno das relações Israel-Palestina e, em nova edição, retorna novamente ao país. Uma voz que está cada vez mais atual.
A mais recôndita memória dos homens, do escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr, vencedor do Prêmio Goncourt 2021, foi um dos melhores livros que no ano passado, publicado aqui pela editora Fósforo com tradução de Diogo Cardoso. O livro gira em torno da busca por um escritor africano enigmático, T.C. Elimane, comparado a grandes nomes como Rimbaud e Faulkner, mas que desapareceu após ser acusado de plágio nos anos 1930. A narrativa acompanha Diegane Latyr Faye, um jovem escritor senegalês que, ao descobrir um livro perdido de Elimane em Paris, embarca numa jornada para desvendar seu mistério. Aqui um pequeno spoiler: há um retorno ao Senegal no fim do livro, onde reflexões sobre identidade, literatura e o legado colonial ganham novas camadas. O retorno ao Senegal não é apenas geográfico, mas simbólico: não é só sobre questões de pertencimento, o que a história colonial apagou e o que significa escrever (e existir) como africano no mundo contemporâneo.
Paradoxos da imigração, do sociólogo franco-argelino Abdelmalek Sayad (1933–1998), uma das vozes mais importantes nos estudos sobre migração e colonialismo, foi publicado postumamente em 1998. A obra reúne ensaios que desmontam estereótipos sobre imigração, mostrando como ela é um fenômeno estrutural das sociedades modernas, e não uma “crise passageira”. Ao mesmo tempo, traz uma série de contradições sobre a condição imigrante, inclusive a da ideia de retorno, que, para ele, é algo bem mais fantasioso do que real, pois mesmo que o imigrante regresse, ele e o país já mudaram, concluindo que já não pertencem a lugar nenhum. Sayad chama isso de “ilusão biográfica”, a ideia de que a migração é uma escolha individual, e não resultado de violências históricas.
Pauladentro
Paulafoi
Estive na Festa Literária da Mantiqueira (Flima) em maio, cuja temática era Deslocamentos e Pertencimentos, como a desta edição da newsletter, e fiz a mediação de duas mesas. Seguem elas aqui:
DESLOCAMENTOS FORÇADOS: MIGRAÇÃO E REFUGIADOS, com Jamil Chade e Marie Ange Bordas
EMERGÊNCIA CLIMÁTICA: OS LIMITES DA PALAVRA, com Ana Rüsche e Prisca Agustoni
Você sempre fazendo a minha lista de livros-desejo crescer, sobretudo a partir deste tema que me atravessa tanto. Obrigada! Se me permite a troca de recomendações, sugiro A triunfante, de Teresa Cremisi, publicado no Brasil pela Âyinè. Certa feita escrevi uma edição sobre: https://open.substack.com/pub/bomproveito/p/portal-do-mundo-a-triunfante-de-teresa?r=szol&utm_medium=ios
Obrigada por essa partilha tão generosa. Para conversar sobre o assunto com as crianças, a minha amiga Denise Gonçalves está lançando o Caminhantes pela Ovolê Editora. De forma poética e delicada, aborda esse assunto tão difícil. Abraço.
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