Paulatinamente #16: Tatiana Salem Levy, Lina Meruane, palestinos e as chaves do retorno
mas por que seu avô não veio, ele mesmo, tentar abrir a porta?
É engraçado como uma coisa leva à outra. Fui há uns meses no lançamento de Seul, São Paulo, do autor boliviano Gabriel Mamani Magne, a Livraria Aigo, no bairro do Bm Retiro, em São Paulo, e ele contou que era gostava muito do livro As chaves da casa, de Tatiana Salem Levy. Ainda não li o livro de Magne, mas acabei lendo essa obra de Salem Levy porque assisti à aula Escrever Escrevendo-se este mês, na Escrevedeira.
Foi um achado! Adorei o livro, pois gosto muito dessas história de descoberta das próprias raízes — ainda que a história principal seja o modo como a protagonista lida com o luto pela morte da mãe. A história é uma ficção, mas baseia-se muito na trajetória da autora, cuja família de origem judaica imigrou de Esmirna, da Turquia, para o Rio de Janeiro. No livro, o avô entrega à protagonista a chave da casa onde havia morado no país.
“Sem me levantar, pego a caixinha na mesa de cabeceira. Dentro dela, em meio ao pó, bilhetes velhos, moedas e brincos, descansa a chave que ganhei do meu avô. Tome, ele disse, essa é a chave da casa onde morei na Turquia. Olhei-o com expressão de desentendimento. Agora, deitada na cama com a have nas mãos, sozinha, continuo sem entender. E o que vou fazer com ela? Você é quem sabe, ele respondeu, como se não tivesse nada a ver com isso. As pessoas vão ficando velhas e, com medo da morte, passam aos outros aquilo que deveriam ter feito mas, por motivos diversos, não fizeram. E agora cabe a mim inventar que destino dar a essa chave, se não quiser passá-la adiante”
“A chave de casa”, de Tatiana Salem Levy
Em meio à história da família que a protagonista imagina, casos amorosos e a morte da mãe, há um relato de viagem para Istambul e Esmirna, em que descreve as diferenças e as semelhanças que tem com os turcos. Ao final — SPOILER! —, ela consegue encontrar alguns primos do avô que estão vivos e, um dos seus parentes mais jovens, Raphael, informa que a casa do seu avô não existe mais. Foi demolida e outras construções foram erigidas no seu lugar. Na visita que ela faz à família seu primo jovem faz a pergunta que ela se faz desde o início do livro:
Entre a sobremesa e o chá, Raphael me perguntou: mas por que seu avô não veio, ele mesmo, tentar abrir a porta?
“A chave de casa”, de Tatiana Salem Levy
A chave de casa me fez lembrar na hora de Tornar-se Palestina, da chilena Lina Meruane, cujo pai é um palestino cristão que imigrou para o Chile. Ela, como Salem Levy, faz o movimento de retorno em busca da família que ainda resta em alguns vilarejos após a Nakba palestina, em 1948, que também marcou a criação do Estado de Israel. Meruane também faz o mesmo questionamento sobre o seu pai, da mesma forma que Salem Levy fez com seu avô:
“Talvez o assuste [o pai] a possibilidade de chegar a essa casa sem ter a chave, bater na porta desse lar vazio do que é seu e cheio de desconhecidos.”
“Tornar-se Palestina”, de Lina Meruane
Em seguida, lembrei que a história de guardar a chave da sua antiga casa, para poder abri-la ao retornar ao seu país de origem, faz parte da simbologia da resistência palestina. As chaves das casas perdidas em 1948 foram passadas de geração em geração por família de refugiados, sendo um símbolo do que consideram o seu direito de retorno — um dos pontos mais difíceis de serem discutidos nas negociações entre srael e Palestina.
“A chave do retorno”, bordado de Hejar Abu Saleem
A tradição de manter as chaves guardadas da casa perdida continua entre os palestinos de Gaza, vítimas de uma limpeza étnica em curso perpetrada pelo governo isrealense comandado por Benjamin Netanyahu. Cerca de 85% da população de Gaza — 1,9 milhão de pessoas — foi obrigada a se deslocar dos seus locais de origem desde outubro de 2023. As suas casas foram destruídas, mas os palestinos deslocados continuam a manter acesa a chama do desejo de retorno ao seu lar.
“Esperando pelo retorno”, de Ahmed Hmeedat
Paulaouvindo
Ouvindo em lopping há uns meses:
Paulavendo
Rei Lear da Cia. Extemporânea: Um “Shakespare in Drag” de uma das grandes tragédias do bardo britânico. Simplesmente maravilhoso!
O espetáculo tem direção de Ines Bushatsky e reúne em cena as queens Alexia Twister, Antonia Pethit, DaCota Monteiro, Ginger Moon, Lilith Prexeva, Maldita Hammer, Mercedez Vulcão, Thelores e Xaniqua Laquisha
O filme iraniano Holy Spider, de Ali Abbasi, é baseado em um caso real de um serial killer que assassina prostituta em Mashad, uma cidade bem religiosa. Uma jornalista de Teerã vai para a cidade para investigar os casos, que está sendo negligenciao pela política local. Pesadão, mas muito importante.