Paulatinamente #10: Virginia Woolf, Carnaval, I Ching e a rua
O bom cidadão, ao abrir sua porta à noite, deve ser um banqueiro, jogador de golfe, marido, pai; não um nômade vagueando pelo deserto, um místico fitando o céu
Não posso dizer que sou uma grande fã de Carnaval como muitos amigos meus. Mas com eles aprendi a viver o Carnaval e a me divertir nessa época do ano. Vejo isso como uma experiência que escolho viver — da mesma forma que por vezes escolho não viver — e dela saio conhecendo outras facetas minhas e das pessoas. É também uma forma de experienciar a rua, onde Virginia Woolf colocava sua mente em movimento, impelindo sua imaginação. “Às vezes, pensar é uma atividade ao ar livre, e uma atividade física”, escreve Rebecca Solnit no maravilhoso ensaio “A escuridão de Virginia Woolf: aceitando o inexplicável” (presente em Os homens explicam tudo para mim).
A foto minha fantasiada de que mais gosto, no Carnaval de 2019, em São Paulo
E foi isso que aconteceu no meio de algum bloco carnavalesco: minha imaginação perdeu-se por entre a multidão, o sol, o suor, a música e os alcaloides e vi uma metáfora da vida social naquela rua. Nós todos ali, juntos, apertados, dividindo o mesmo espaço com músicos, árvores, arbustos, carrinhos de bebida e seus vendedores, automóveis, calçadas instáveis, no maior corpo a corpo. É uma festa para e com o coletivo, então, para o melhor andamento do bloco, é salutar que as pessoas pensem mais no coletivo do que no indivíduo.
Em um mar de gente andando em uma direção, se alguém seguir no contrafluxo, problemas poderão surgir para toda essa corrente. O mesmo acontece quando alguém resolve parar na frente de todo mundo (para esperar um amigo, beijar um desconhecido, fazer xixi), ou então quando quer andar mais que rápido que a massa, empurrando todos e podendo deixar alguns pés feridos pelo caminho.
Isso me lembrou a filosofia do I Ching, o milenar e sábio oráculo chinês, que não é tanto um manual de adivinhação, mas um texto que procura ajudar a pessoa a seguir a vida com menos sofrimento. A metáfora aqui é a do rio e nós, seres humanos, somos os peixes — não adianta tentar nadar contra a correnteza, você só vai se debater à toa, pois as águas seguirão seu curso e levarão você de qualquer jeito; do mesmo modo, não é aconselhável tentar nadar mais rápido que o fluxo de água, você só vai se cansar e gastar uma energia que poderia ser guardada para outras coisas, a afobação só atrapalha. O mais desafiador é exatamente isso: seguir o fluxo, seja este formado por águas ou pessoas.
E voltamos a Virginia Woolf!
A grande lição aqui é abrir mão do controle, deixar-se levar para onde não se sabe. Não é prudente se deixar desesperar. Mantenha a calma sempre. Porque o bloco de Carnaval é o local propício para encontros, desencontros e reencontros. É comum trombar de modo inesperado com amigos que não se via há muito tempo, reencontrar colegas e conhecidos em fantasias exdrúxulas e até perder a turma com quem você chegou para depois reencontrá-la logo adiante. Ou então simplesmente conhecer gente nova. Pedir beijos para desconhecidos, levar foras, dar perdidos, criar conexões na fila do banheiro, ter o celular furtado, tudo isso em um único dia quando todos estão na rua. E não é isso a vida? Viver tudo do bom e do ruim. (Nessa toada, recomendo a leitura do último texto da newsletter Da Janela, da Isadora Sinay, que tá de arrepiar.)
O Carnaval e outras festas populares foram justamente criadas para que a ordem social fosse virada de cabeça para baixo com o intuito de extravasar toda a tensão da vida em sociedade e para que o status quo pudesse ser mantido. Isso também nos incita a pensar sobre a nossa própria identidade. Voltando à Virginia Woolf andarilha, em “Street Haunting”, ela resume bem o sentimento do que os foliões estão fugindo durante ao incorporar fantasias:
“Ou será o verdadeiro eu nem isto nem aquilo, nem aqui nem acolá, mas algo tão variado, errante, sinuoso, que é apenas quando damos rédea solta aos seus desejos e deixamos que tome seu caminho sem impedimentos — é somente aí que realmente somos nós mesmos? As circunstâncias obrigam a unidade; por motivos de conveniência, o homem deve ser um todo completo. O bom cidadão, ao abrir sua porta à noite, deve ser um banqueiro, jogador de golfe, marido, pai; não um nômade vagueando pelo deserto, um místico fitando o céu, um libertino nas favelas de São Francisco, um soldado comandando uma revolução, um pária uivando com ceticismo e solidão.”
Ainda me valendo de Rebecca Solnit comentando Virginia Woolf, a jornalista e historiadora elogia a defesa da incerteza pela autora britânica, no que me lembra a ideia de identidade no sufismo, que afirma não existir uma essência em si pois somos todos manifestações de Deus. “Woolf pede uma versão mais introspectiva do ‘Eu contenho multidões’ do poeta Walt Whitman, uma versão mais diáfana do ‘Eu sou outro’ do poeta Arthur Rimbaud. Ela pede circunstâncias que não imponham uma identidade única, que é uma limitação ou mesmo uma repressão.”
No Carnaval, então, as pessoas assumem quem elas realmente são ou quem elas gostariam de ser? Acredito que as duas coisas, e mais: elas se tornam quem elas não queriam ser e quem elas acham que não são. Porque estamos nos reimaginando e nos transformando o tempo todo, no Carnaval e fora dele.
E depois de ter todo esse contato com as energias mais díspares, fico contente em me recolher na minha concha (sou canceriana, é sempre 8 ou 80), voltar à introspecção e sentir o que sentiu uma das personagens de Ao farol, de Woolf:
“Pois no momento ela não precisava pensar em ninguém. Podia ser ela mesma, sozinha consigo mesma. E era disso que ela agora sentia necessidade com tanta frequência — necessidade de pensar; bem, nem sequer de pensar. De estar em silêncio; de estar sozinha.”
O que me lembra esse verso maravilhoso da canção “Empty Room” do Arcade Fire (minha banda preferida!): “When I’m by myself/ I can be myself” (quando estou comigo mesmo é que eu posso ser eu mesmo). E isso não tem preço.
E como março tem entrega do Oscar aqui vai minha pequena contribuição sobre Emily Blunt, indicada ao prêmio de melhor atriz coadjuvante em Oppenheimer:
Paulaescreve
Escrevi pela primeira vez para a seção de Literatura Japonesa da revista Quatro Cinco Um! Foi uma resenha da trilogia Antes que o café esfrie, de Toshikazu Kawaguchi, um sucesso mundial, que cria suas próprias leis sobre viagem no tempo.
Comecei a escrever sobre filmes no Jornal Nota! Aqui vai a primeira resenha, sobre O menino e a garça, de Hayao Miyazaki.
Pauladentro
Dia 16 de março, sábado, das 14h30 às 16h, estarei no Sesc Jundiaí participando do Sempre um Papo, com o escritor Marcelo Maluf. Vamos conversar sobre seus livros A imensidão íntima dos carneiros e Os últimos dias de Elias Ghandour.
Os próximos encontros do Leituras Extraordinárias, clube de leitura que coordeno com a Ana Rüsche na Livraria da Tarde, são estes:
28 de fevereiro, quinta: Samarcanda, de Amin Maalouf. Trad. Marília Scalzo (Ed. Tabla). Com a participação de Jemina Alves.
14 de março, quinta: Todos os caminhos estão abertos, de Annemarie Schwarzenbach. Trad. Giovane Rodrigues e Silvia Naschenveng (Ed. Mundaréu).